terça-feira, 22 de setembro de 2015

À Espera de Godot (Samuel Beckett - 1952) #trechos

"Eis o homem! Põe a culpa no sapato, quando o culpado é o pé."

"Ele parou de chorar. Você tomou o lugar dele. As lágrimas do mundo existem em quantidades constantes. Para cada homem que começa a chorar, alguém para em algum lugar. O mesmo é com a risada."

"A noite não descerá nunca?"

"O tempo parou."

"Agora eu entendo! Você não é daqui. Não sabe o que nossos crepúsculos podem fazer."

"Estragon: Não sou feliz!
Vladimir: Desde quando?
Estragon: Eu não me lembro."

"Eu às vezes me pergunto se não teria sido melhor que a gente tivesse ficado sozinho, cada um por si. Não fomos feitos para a mesma estrada."

"Você e suas paisagens! Fale-me sobre os vermes!"

"Vladimir: A cada um sua pequena cruz. Até que morra. E seja esquecido.
Estragon: Enquanto isso, vamos tentar conversar com calma, já que a gente é incapaz de ficar em silêncio.
Vladimir: Tem razão, somos incansáveis.
Estragon: É para não pensarmos.
Vladimir: Temos essa desculpa.
Estragon: É para não ouvirmos.
Vladimir: Temos nossos motivos.
Estragon: Todas as vozes mortas.
Vladimir: Fazem um ruído de asas.
Estragon: De folhas.
Vladimir: De areia.
Estragon: De folhas.
Vladimir: Falam todas ao mesmo tempo.
Estragon: Cada uma para si.
Vladimir: Na verdade elas sussurram.
Estragon: Cochicham.
Vladimir: Murmuram.
Estragon: Chochicham.
Vladimir: O que é que dizem?
Estragon: Falam sobre suas vidas.
Vladimir: Terem vivido não foi o bastante.
Estragon: Têm que dizer sobre.
Vladimir: Terem morrido não foi o bastante.
Estragon: Não é suficiente."

"Isso está ficando realmente insignificante."

"A gente sempre inventa alguma coisa para ter a impressão de que a gente existe, hein, Didi?"

"Estou cansado de respirar."

"Não estamos mais sozinhos, à espera da noite, à espera de Godot, à espera da... Espera. Nós lutamos sozinhos durante toda a tarde. Agora está terminado. Já é amanhã."

"Não vamos perder tempo com discussões inúteis! Vamos fazer alguma coisa, enquanto temos a oportunidade! Não é todo dia que precisam de nós. Não que precisem realmente de nós. Outros poderiam tratar do assunto tão bem quanto a gente, talvez até melhor do que a gente. Esses gritos de socorro que ainda ressoam em nossos ouvidos foram dirigidos à humanidade inteira! Mas neste momento, neste lugar, a humanidade inteira se resume em nós, queiramos ou não. Vamos fazer o melhor que pudermos, antes que seja tarde demais! Vamos representar dignamente, ao menos uma vez, o terrível papel que um cruel destino nos reservou! Que é que você me diz? É evidente, também, que, se ficarmos de braços cruzados, pesando os prós e os contras, também faremos justiça à nossa espécie. O tigre se precipita em socorro de seus congêneres sem a menor reflexão. Ou foge a se esconder nos emaranhados da selva. Mas a questão não é essa. O que é que estamos fazendo aqui? Esta é a questão. E somos abençoados por conhecer a resposta. Sim, em meio a essa imensa confusão, uma só coisa está clara: estamos esperando Godot. (...) Ou que a noite caia. Nós não faltamos ao compromisso, quanto a isso não há dúvidas. Não somos santos, mas não faltamos ao compromisso. Quantas pessoas podem dizer o mesmo? (...) Tudo o que sei é que, sob estas condições, as horas são longas e nos compelem a nos distrairmos com práticas que – como devo dizer – que podem parecer razoáveis à primeira vista, até se tornarem um hábito. Você pode argumentar que isso impede que nossa razão sucumba. Sem dúvida. Mas não estará a razão vagando pela noite sem fim das profundezas abissais? É isso que eu às vezes me pergunto."

"Todos nascemos loucos. Alguns permanecem assim."

"Em breve tudo terá passado e estaremos sozinhos mais uma vez sozinhos, em pleno nada!"

"Um belo dia acordei cego como o Destino. Às vezes me pergunto se ainda estou dormindo."

"Você não cessa de me atormentar com suas malditas histórias sobre o tempo? É abominável! Quando! Quando! Um dia, será que não é o bastante para você? Um dia ele ficou mudo, um dia eu  fiquei cego, um dia ficaremos surdos, um dia nascemos, um dia morremos, o mesmo dia, o mesmo segundo, não lhe basta? O nascimento ocorre com um pé sobre a cova, a luz brilha durante um breve instante, então é noite novamente."

"Eu estava dormindo enquanto os outros sofriam? Estarei dormindo agora? Amanhã, quando despertar, ou achar que despertei, o que direi do dia de hoje? Que junto a Estragon, meu amigo, neste lugar, até o cair da noite, esperei por Godot?"

"Que Pozzo passou com seu criado e falou conosco? É provável. Mas que verdade haverá em tudo isso? Ele não saberá nada. Me dirá sobre os golpes que recebeu e eu lhe darei uma cenoura. (Pausa.) Um pé sobre a cova e um nascimento difícil. Apático, ao fundo do buraco o coveiro aplica seu fórceps. Temos tempo para envelhecer. O ar está repleto dos nossos gritos. Mas o hábito é uma grande surdina. Também para mim alguém está olhando, também sobre mim alguém está dizendo: ele está dormindo, ele não sabe nada, deixe-o dormir. Não posso mais continuar assim! O que foi que eu disse?"

segunda-feira, 31 de agosto de 2015

Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (filme 2004) #trechos

"Pensamentos avulsos para o Dia dos Namorados, 2004:
Hoje é um dia inventado pelos fabricantes de cartões para fazerem as pessoas se sentirem como bostas."

"Seremos como esses casais dos quais sentimos pena nos restaurantes? Somos os mortos que jantam?"

"Feliz é a inocente vestal!
Esquecendo o mundo e sendo por ele esquecida.
Brilho eterno de uma mente sem lembranças,
Toda prece é ouvida, toda graça se alcança."
(Alexander Pope)

"- É isso, Joel. Daqui a pouco vai acabar.
- Eu sei.
- O que fazemos?
- Aproveitamos."

domingo, 30 de agosto de 2015

Manifesto do Partido Comunista (Karl Marx e Friedrich Engels - 1848) #trechos

Marx confiava apenas e tão somente no desenvolvimento intelectual da classe trabalhadora, o qual haveria necessariamente de brotar da ação e da discussão conjunta de todos os seus membros.
(Prefácio à quarta edição alemã de 1890, F. Engels)

Cada um desses estágios do desenvolvimento da burguesia se fez acompanhar do correspondente progresso político. Estamento oprimido sob a dominação dos senhores feudais, associação armada e autogovernante, na comuna, ora república municipal independente, ora terceiro estamento tributável da monarquia, depois, à época da manufatura, contrapeso para a nobreza da monarquia estamental ou na absoluta, fundamento central de todas as grandes monarquias - a burguesia por fim conquistou para si, desde o estabelecimento da grande indústria e do mercado mundial, a exclusiva dominação política no moderno Estado representativo. O moderno poder estatal é apenas uma comissão que administra os negócios comuns de toda a classe burguesa. (Cap. I - Burgueses e Proletários)

A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção - ou seja, as relações de produção -, isto é, o conjunto das relações sociais. (Cap. I - Burgueses e Proletários)

A transformação contínua da produção, o abalo ininterrupto de todas as condições sociais, incerteza e movimento eternos, eis aí as características que distinguem a época burguesa de todas as demais. Todas as relações sólidas e enferrujadas, com seu séquito de venerandas e antigas concepções e visões se dissolvem; todas as novas envelhecem antes mesmo que possam se solidificar. Evapora-se toda estratificação, todo o estabelecido; profana-se tudo que é sagrado, e as pessoas se veem enfim obrigadas a enxergar com olhos sóbrios seu posicionamento na vida, suas relações umas com as outras. (Cap. I - Burgueses e Proletários)


No lugar das antigas necessidades, antes atendidas por produtos nacionais, surgem outras, cuja satisfação demanda produtos de países e climas longínquos. Em lugar da velha autossatisfação e do velho isolamento local e nacional, surgem relações abrangentes, uma abrangente interdependência entre as nações. E isso tanto no que se refere à produção material quanto à intelectual. Os produtos intelectuais de cada nação tornam-se bens comuns. Cada vez mais impossível se faz a unilateralidade, a estreiteza nacional, e a partir das muitas literaturas locais, nacionais, forma-se uma literatura universal. (Cap. I - Burgueses e Proletários)

Vimos, portanto, que a sociedade feudal gerou os meios de produção e circulação que constituíram a base para a formação da burguesia. Uma vez atingido certo patamar de desenvolvimento desses meios de produção e circulação, as condições em que a sociedade feudal da agricultura e da manufatura - em suma, as relações feudais de propriedade -, deixaram de ser compatíveis com as forças de produção desenvolvidas. Elas inibiam a produção, em vez de estimulá-la. Transformaram-se em grilhões. Era necessário explodi-los, e assim foi feito. (Cap. I - Burgueses e Proletários)

As armas de que a burguesia se valeu para derrotar o feudalismo voltam-se agora contra a própria burguesia. Ela, porém, não apenas forjou as armas que vão matá-la, mas gerou também os homens que vão empunhar essas armas: os trabalhadores modernos, os proletários.
Na mesma medida em que se desenvolve a burguesia - isto é, o capital - desenvolve-se também o proletariado, a classe dos trabalhadores modernos, que só sobrevivem à medida que encontram trabalho, e só encontram trabalho à medida que seu próprio trabalho multiplica o capital. Esses trabalhadores, que precisam se vender a varejo, são uma mercadoria como qualquer outro artigo vendido no comércio, sujeita, portanto, a todas as vicissitudes da concorrência e a todas as oscilações do mercado. (Cap. I - Burgueses e Proletários)

O trabalhador torna-se mero acessório da máquina, do qual se exige apenas o mais simples e monótono movimento da mão, de aprendizado facílimo. Os custos que o trabalhador acarreta restringem-se, assim, quase que tão somente ao dos víveres de que ele necessita para seu sustento e para a propagação de sua espécie. O preço de uma mercadoria, porém, e portanto do trabalho, é igual ao de seus custos de produção. À medida que cresce a repugnância pelo trabalho, diminui, pois, o salário. (Cap. I - Burgueses e Proletários)

Mas toda luta de classes é uma luta política. (Cap. I - Burgueses e Proletários)

Os estratos médios - o pequeno industrial, o pequeno comerciante, o artesão, o camponês - combatem a burguesia para evitar sua extinção como estratos médios. Não são, portanto, revolucionários, e sim conservadores. Mais do que isso, são reacionários, buscam girar para trás a roda da história. Quando são revolucionários, eles o são em vista da iminente transição para o proletariado; não defendem, pois, seus interesses presentes, e sim os futuros; abandonam seu ponto de vista para assumir o do proletariado. (Cap. I - Burgueses e Proletários)

Nesse sentido, o comunismo pode resumir sua teoria numa única expressão: a abolição da propriedade privada. (Cap. II - Proletários e Comunistas)

Ser capitalista significa assumir uma posição não apenas puramente pessoal, mas também uma posição social na produção. O capital é um produto coletivo, algo que só pode ser posto em movimento pela atividade conjunta de muitos membros da sociedade, ou, em última instância, pela atividade conjunta da totalidade de seus membros. (Cap. II - Proletários e Comunistas)

O preço médio do trabalho assalariado é a remuneração mínima, ou seja, a soma dos gêneros alimentícios necessários para manter vivo, e trabalhando, o trabalhador. Assim, aquilo de que o trabalhador assalariado se apropria mediante sua atividade basta apenas para reproduzir sua vida nua e crua. Não queremos de modo algum suprimir esse apropriar-se dos produtos do trabalho com vistas à reprodução da vida pura e simples - um apropriar-se que não enseja ganho líquido resultante em poder sobre o trabalho dos outros. O que queremos suprimir é apenas o caráter miserável dessa apropriação, que só permite que o trabalhador viva para multiplicar o capital, e apenas na medida em que essa vida seja do interesse da classe dominante. (Cap. II - Proletários e Comunistas)

Assim, na sociedade burguesa, o passado domina o presente; na comunista, é o presente que domina o passado. Na sociedade burguesa o capital é autônomo e pessoal, ao passo que o indivíduo atuante é impessoal e destituído de autonomia.
E a abolição dessa situação é o que a burguesia chama de abolição da personalidade e da liberdade! Tem razão. Trata-se, todavia, da abolição da personalidade, autonomia e liberdade dos burgueses.
Dentro das atuais relações de produção burguesas, entende-se por liberdade o livre-comércio, a liberdade de comprar e vender. (Cap. II - Proletários e Comunistas)

Horroriza os senhores o fato de querermos abolir a propriedade privada. A verdade, porém, é que ela já foi abolida para nove décimos da sociedade dos senhores; e é ao fato de não existir para nove décimos dessa sociedade que ela deve sua existência. Os senhores nos acusam, pois, de querer abolir uma propriedade que tem por pressuposto necessário a imensa maioria da sociedade não dispor de propriedade nenhuma.
Os senhores nos acusam, em resumo, de querer abolir a sua propriedade. E é isso mesmo que queremos. (Cap. II - Proletários e Comunistas)

O comunismo não tira de ninguém o poder de se apropriar de produtos sociais; tira, sim, apenas o poder de, mediante essa apropriação, subjugar o trabalho dos outros. (Cap. II - Proletários e Comunistas)

Acusam, ademais, os comunistas de querer suprimir a pátria, as nacionalidades.
Os trabalhadores não têm pátria. Não se pode tirar deles o que não têm. Sendo imperativo que o proletariado, antes de mais nada, conquiste o domínio político, se erga em uma classe nacional e se constitua em uma nação, ele próprio será nacional, ainda que não no sentido burguês do termo. (Cap. II - Proletários e Comunistas)

À medida que se abolir a exploração de um indivíduo pelo outro, abolir-se-á também a exploração de uma nação pela outra.(Cap. II - Proletários e Comunistas)

O proletariado usará sua dominação política para, pouco a pouco, arrancar da burguesia todo o capital, centralizar todos os instrumentos de produção nas mãos do Estado - isto é, do proletariado organizado como classe dominante - e multiplicar o mais rapidamente possível a massa das forças de produção.
De início, é claro que isso só pode acontecer por intermédio de intervenções despóticas no direito de propriedade e nas relações de produção burguesas, ou seja, por intermédio de medidas que parecem economicamente insuficientes e insustentáveis, mas que, no curso do movimento, transcenderão a si mesmas e são inevitáveis como meio de transformação da totalidade do modo de produção. (Cap. II - Proletários e Comunistas)

Naturalmente, essas medidas serão diferentes nos diferentes países.
Para os países mais desenvolvidos, no entanto, aplicar-se-ão de forma geral as que seguem:
1. Expropriação da propriedade fundiária e utilização das rendas da terra nas despesas do Estado.
2. Forte imposto progressivo.
3. Supressão do direito de herança.
4. Confisco da propriedade de todos os emigrantes e rebeldes.
5. Centralização do crédito nas mãos do Estado mediante um banco nacional com capital estatal e monopólio exclusivo.
6. Centralização dos transportes nas mãos do Estado.
7. Multiplicação das fábricas nacionais, dos instrumentos de produção; expansão e melhoria das terras para o cultivo segundo um plano comunitário.
8. Obrigatoriedade do trabalho para todos, criação de exércitos industriais, sobretudo para a agricultura.
9. União das atividades agrícolas e industriais, empenho na eliminação gradativa da diferença entre cidade e campo.
10. Educação pública e gratuita para todas as crianças. Eliminação do trabalho infantil nas fábricas em sua forma atual. Associação da educação com a produção material etc. (Cap. II - Proletários e Comunistas)

No lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classes, surge uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos. (Cap. II - Proletários e Comunistas)

Os comunistas repudiam todo e qualquer ocultamento de suas posições e intenções. Eles declaram abertamente que seus propósitos só podem ser alcançados mediante a derrubada pela força de toda ordem social até hoje reinante. Que as classes dominantes tremam ante a revolução comunista. Os proletários nada mais têm a perder com ela do que seus grilhões. Têm, sim, um mundo a ganhar.
PROLETÁRIOS DE TODOS OS PAÍSES, UNAM-SE! (Cap. IV - O posicionamento dos comunistas em relação aos diversos partidos oposicionistas)

sábado, 29 de agosto de 2015

Um Experimento na Crítica Literária (C.S.Lewis - 1961) #trechos

"Em terceiro lugar, a primeira leitura de uma obra literária para os literatos é, com frequência, uma experiência tão importante e significativa que apenas experiências como o amor, a religião ou o luto podem servir como parâmetro de comparação. Toda a sua consciência é alterada. Eles se transformam no que não eram antes. Mas não há nem indício de algo assim entre os outros tipos de leitores, que quando terminam um conto ou um romance, nada de muito especial ou nada – simplesmente – parece ter acontecido a eles.
(…) Os primeiros repetem, na solidão, seus versos e estrofes favoritos. Cenas e personagens dos livros lhes fornecem uma espécie de iconografia com a qual interpretam ou sintetizam sua própria experiência. Eles falam uns com os outros sobre livros com frequência e profundidade. Os últimos quase nunca pensam ou falam sobre suas leituras.
(…) Nós tratamos como ingrediente essencial para nosso bem-estar algo que para elas é periférico." (Os Poucos e os Muitos)

"Eu estou pensando naqueles estudiosos desafortunados de universidades estrangeiras que não podem “manter seu emprego” a menos que publiquem repetidamente artigos que devem dizer, ou pareçam dizer, algo de novo sobre algum texto literário; ou nos críticos sobrecarregados de trabalho, passando de um romance para o próximo, tão rapidamente quanto possam, como um jovem se preparando para o vestibular. Para pessoas assim, ler torna-se, com frequência, mero trabalho. O texto diante delas não existe em seu pleno direito, mas simplesmente como matéria-prima, barro com o qual completam os tijolos de sua história. Consequentemente, em suas horas de lazer eles leem, se é que leem, como muitos o fazem." (Caracterizações Falsas)
           
"Entretanto, enquanto isso acontece, a única experiência literária real de uma família como essa pode estar ocorrendo em um quartinho dos fundos onde um garotinho lê A ilha do tesouro sob os cobertores, à luz de uma lanterna." (Caracterizações Falsas)

"Sentamo-nos em frente ao quadro no intuito de que ele nos faça algo, e não para que façamos algo com ele. Entregar-se é a primeira demanda que qualquer trabalho de arte nos faz. Olhar. Escutar. Receber. Tirarmos a nós mesmo do caminho. (E não vale a pena perguntarmo-nos primeiro se a obra à nossa frente merece tal entrega, porque enquanto não nos entregarmos, não será possível saber isso.)" (Como os Poucos e os Muitos usam as Imagens e as Músicas)

"A distinção entre um e outro caso dificilmente poderia ser mais bem traduzida do que dizendo que os muitos usam a arte e os poucos a recebem. Os muitos se comportam em relação a isso como um homem que fala quando deveria escutar, ou que dá quando deveria receber." (Como os Poucos e os Muitos usam as Imagens e as Músicas)

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Grande Sertão: Veredas (João Guimarães Rosa - 1956) #trechos

Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus, arredado de arrocho de autoridade.

Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães e questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.

Quem muito se evita, se convive.

Viver é negócio muito perigoso...

Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era e mesmo este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças - eu digo. Pois não é ditado: "menino - trem do diabo"? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes. ...O diabo na rua. no meio do redemunho...

Arre, ele está misturado em tudo.

Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois - e Deus, junto. Vi muitas nuvens.

O senhor não duvide - tem gente, neste aborrecido mundo, que matam só para ver alguém fazer careta...

O senhor saiba: eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Divêrjo de todo o mundo... Eu quase que nada não sei. Mas desconfio de muita coisa.

todo-o-mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar.

Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas. Bebo água de todo rio...

Viver é muito perigoso...

Deus é paciência. O contrário, é o diabo.

sertão é onde manda quem é forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado!

O senhor sabe: o perigo que é viver...

Eu queria morrer pensando em meu amigo Diadorim.

Com meu amigo Diadorim me abraçava, sentimento meu ia-voava reto para ele...

Informação que pergunto: mesmo no Céu, fim de fim, como é que a alma vence se esquecer de tantos sofrimentos e maldades, no recebido e no dado?

Ah, vai vir um tempo, em que não se usa mais matar gente... Eu, já estou velho.

O senhor... Mire veja: o mais importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior.

o diabo, é às brutas; mas Deus é traiçoeiro! Ah, uma beleza de traiçoeiro - dá gosto! A força dele quando quer - moço! - me dó o medo pavor! Deus vem vindo: ninguém não vê. Ele faz é na lei do mansinho - assim é o milagre. E Deus ataca bonito, se divertindo, se economiza.

Bem, o senhor ouviu, o que ouviu sabe, o que sabe me entende...

terça-feira, 25 de agosto de 2015

Cem Anos de Solidão (Gabriel García Márquez - 1967) #trechos

Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. (pg.43)

O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las era preciso apontar com o dedo. (pg.43)

"As coisas têm vida própria" - apregoava o cigano com sotaque áspero -, "é só questão de despertar suas almas." (pg.43)

A única coisa que conseguiu foi desenterrar uma armadura do século XV com todas as suas partes soldadas por uma casca de ferrugem, cujo interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras. Quando José Arcádio Buendía e os quatro homens de sua expedição conseguiram desmontar a armadura, encontraram dentro dela um esqueleto calcificado que levava dependurado no pescoço um relicário de cobre com um cacho de cabelo de mulher." (pg.44)

Era um fugitivo de todas as pragas e catástrofes que haviam flagelado o gênero humano. Sobrevivera à palagra na Pérsia, ao escorbuto no arquipélago da Malásia, à lepra em Alexandria, ao beribéri no Japão, à peste bubônica em Madagascar, ao terremoto da Sicília e a um naufrágio multitudinário no estreito de Magalhães. (pg.47)

"No mundo estão acontecendo coisas incríveis", dizia a Úrsula. "Ali mesmo, do lado de lá do rio, existe tudo que é tipo de aparelho mágico, enquanto nós continuamos vivendo feito burros". (pg.50)

e o mundo ficou triste para sempre. (pg.53)

Achar o galeão, indício da proximidade do mar, estraçalhou o ímpeto de José Arcádio Buendía. Considerava uma ironia de seu travesso destino ter buscado o mar sem encontrá-lo, ao preço de sacrifícios e penas sem conta, e ter encontrado o mar sem buscá-lo, atravessado em seu caminho como um obstáculo invencível. (pg.54)

"Já que ninguém quer ir embora, vamos sozinhos." Úrsula não se alterou.
- Não vamos não - disse ela. - Nós ficamos aqui, porque aqui tivemos um filho.
- Mas ainda não temos um morto - disse ele. - E a gente é de lugar nenhum enquanto não tem um morto debaixo deste lugar.
Úrsula replicou, com uma suave firmeza:
- Pois se for preciso que eu morra para que vocês fiquem aqui, então eu morro. (pg.55)

José Arcádio Buendía, sem entender, estendeu a mão até o bloco de gelo, mas o gigante não deixou. "Para tocar, são mais cinco pesos", disse. José Arcádio Buendía pagou, e então pôs a mão sobre o gelo, e a manteve por vários minutos, enquanto seu coração se inchava de temos e de júbilo graças ao contato com o mistério. Sem saber o que fizer, pagou mais dez pesos para que seus filhos vivessem a prodigiosa experiência. O pequeno José Arcádio se negou a tocar. Aureliano, porém, deu um passo adiante, pôs a mão e a retirou no ato. "Está fervendo", exclamou assustado. (pg.59)

"Vestiu-se às apalpadelas, ouvindo na escuridão a repousada respiração do irmão, a tosse seca do pai no quarto vizinho, a asma das galinhas no quintal, o zumbido dos mosquitos, o bumbo do seu coração e a algazarra sem-fim do mundo, que ele não tinha percebido até então, e saiu pela rua adormecida." (pg.68)

Haviam, sim, contraído a enfermidade da insônia. Úrsula, que tinha aprendido com a mãe o valor medicinal das plantas, preparou e fez todos tomarem uma beberagem de acônito, mas não conseguiram dormir e passaram o dia inteiro sonhando acordados. Nesse estado de alucinada lucidez não apenas viam as imagens de seus próprios sonhos, mas uns viam as imagens sonhadas pelos outros. Era como se a casa tivesse se enchido de visitas. (pg.86)

E assim continuaram vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras, mas que fugiria sem remédio quando fosse esquecido o valor da letra escrita.
Na entrada do caminho do pantanal tinha sido colocado um anúncio que dizia Macondo, e outro maior na rua central que dizia Deus existe. Em todas as casas tinham sido escritas palavras para memorizar os objetos e os sentimentos. Mas o sistema exigia tamanha vigilância e tanta fortaleza moral que muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por eles mesmos, que acabou sendo menos prática, porém mais reconfortante. Pilar Ternera foi quem mais contribuiu para popularizar essa mistificação, quando concebeu o artifício de ler o passado nas cartas do baralho, da mesma forma que antes lia o futuro. (pg.89)

O cigano chegava disposto a ficar no povoado. Havia estado na morte, era verdade, mas tinha regressado porque não conseguiu aguentar a solidão. Repudiado pela sua tribo, desprovido de qualquer faculdade sobrenatural como castigo por sua fidelidade à vida, decidiu refugiar-se naquele rincão do mundo ainda não descoberto pela morte, dedicado à exploração de um laboratório de daguerreotipia. (pg.91)

Francisco, o Homem, que assim era chamado por ter derrotado o diabo num duelo de repentes, e cujo verdadeiro nome ninguém jamais fico sabendo, desapareceu de Macondo durante a peste da insônia e certa noite reapareceu sem aviso algum na taberna de Catarino. (pg.93)

Rebeca esperava o amor às quatro da tarde bordando ao lado da janela. Sabia que a mula do correio só chegava a cada quinze dias, mas esperava sempre, convencida de que ia chegar num dia qualquer por engano. Aconteceu exatamente o contrário: uma vez a mula não chegou no dia previsto. Louca de desesperação, Rebeca se levantou à meia-noite e comeu punhados de terra no jardim, com uma avidez suicida, chorando de dor e de fúria, mastigando minhocas tenras e trincando os dentes nas carapaças dos caracóis. Vomitou até o amanhecer. Afundou num estado de prostração febril, perdeu a consciência, e seu coração abriu-se num delírio sem pudor. (pg.107)

Anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, Arcádio haveria de se lembrar do tremor com que Melquíades o fez ouvir várias páginas de sua escrita impenetrável, que é claro que não entendeu, mas que ao serem lidas em voz alta pareciam encíclicas cantadas. (pg.113)

Fatigou-se tanto com a febre da insônia, que certa madrugada não conseguiu reconhecer o ancião de cabeça branca e gestos incertos que entrou no seu quarto. Era Prudência Aguilar. Quando enfim o identificou, assombrado de que os mortos também envelhecessem, José Arcádio Buendía sentiu-se sacudido pela nostalgia. "Prudêncio - exclamou - como é que você veio parar tão longe!". Depois de tantos anos de morte, era tão intensa a saudade dos vivos, tão urgente a necessidade de companhia, tão aterradora a proximidade da outra morte que existia dentro da morte, que Prudêncio Aguilar havia terminado por gostar do pior de seus inimigos. Levava muito tempo procurando por ele. Perguntava aos mortos de Riohacha, aos mortos que chegavam do Vale do Upar, aos que chegavam do pantanal, e ninguém sabia dar com ele, porque Macondo era um povoado desconhecido para os mortos até que chegou Melquíades e apontou um pontinho negro nos coloridos mapas da morte. (pg.119)

Cansado de pregar no deserto, o padre Nicanor resolveu empreender a construção de um templo, o maior do mundo, com santos em tamanho natural e vidros coloridos nas paredes, para que gente até de Roma fosse honrar a Deus naquele centro de impiedade. Andava por todos os lados pedindo esmola com um pratinho de cobre. (pg.123)

Até mesmo a simples ideia de pensar em uma nova data para o casamento teria sido tão irreverente, que o noivado se transformou em uma relação eterna, um amor de cansaço com o qual ninguém tornou a se preocupar, como se os namorados que eu outros dias desarmavam as lamparinas para se beijar tivessem sido abandonados aos caprichos da morte. Perdido o rumo, completamente desmoralizada, Rebeca tornou a comer terra. (pg.130)

"Você é mulher demais, irmãzinha." Rebeca perdeu o domínio de si mesma. Voltou a comer terra e cal das paredes com a avidez de outros dias, e chupou o dedo com tanta ansiedade que formou um calo no polegar. Vomitou um líquido verde com sanguessugas mortas. (pg.133)

Porque tinha a rara virtude de não existir por completo a não ser no momento oportuno. (pg.153)

Pensava em sua gente sem sentimentalismo, num severo acerto de contas com a vida, começando a compreender o quanto na verdade amava as pessoas que mais havia odiado. (pg.159)

Na escola destruída onde experimentou pela primeira vez a segurança do poder, a poucos metros de onde conheceu a incerteza do amor, Arcádio achou ridículo o formalismo da morte. Na verdade não se importava com a morte mas com a vida, e por isso a sensação que sentiu quando pronunciaram a sentença não foi uma sensação de medo e sim de nostalgia. (pg.159)

"Ai, caralho! - chegou a pensar - esqueci de dizer que se nascer mulher ponham o nome de Remédios." (pg.160)

Não sentiu medo, nem nostalgia, mas uma raiva intestinal diante da ideia de que aquela morte artificiosa não lhe permitia conhecer o final de tantas coisas que deixava sem terminar. (pg.166)

"Tanto se foder", murmurava o coronel Aureliano Buendía. "Tanto se foder para acabar morto por seis maricas, e sem poder fazer nada." Repetia isso com tamanha raiva que quase parecia fervor, e o capitão Roque Carnicero se comoveu porque achou que ele estava rezando. (pg.168)

MISE EN ABYME:
Mas na verdade a única pessoa naquele tempo com quem ele conseguia manter contato era Prudêncio Aguilar. Já quase pulverizado pela profunda decrepitude da morte, Prudêncio Aguilar ia duas vezes por dia conversar com ele. Falavam de galos de briga. Prometiam um ao outro montar uma criação de animais magníficos, não tanto para desfrutar de vitórias que já não lhes fariam falta, mas para terem alguma coisa com que se distrair nos tediosos domingos da morte. Era Prudêncio Aguilar quem o limpava, lhe dava de comer e levava notícias esplêndidas de um desconhecido que se chamava Aureliano e era coronel na guerra. Quando estava sozinho, José Arcádio Buendía se consolava com o sonho dos quartos infinitos. Sonhava que se levantava da cama, abria a porta e passava para outro quarto igual, com a mesma cama de cabeceira de ferro batido, a mesma poltrona de vime e o mesmo quadrinho da Virgem dos Remédios na parede dos fundos. Desse quarto passava a outro exatamente igual, cuja porta abria para passar a outro exatamente igual, e depois a outro exatamente igual, até o infinito. Gostava de ir de quarto em quarto, como numa varanda de espelhos paralelos, até que Prudêncio Aguilar tocava seu ombro. Então regressava de quarto em quarto, despertando para trás, percorrendo o caminho inverso, e encontrava Prudêncio Aguilar no quarto da realidade. Mas certa noite, duas semanas depois de ter sido levado para a cama, Prudêncio Aguilar tocou em seu ombro num quarto intermediário, e ali ele ficou para sempre, achando que era o quarto real. (pg.179)

- Vim para o funeral do Rei.
Então entraram no quarto de José Arcádio Buendía, o sacudiram com todas as forças, gritaram em seu ouvido, puseram um espelho diante de suas narinas, mas não conseguiram despertá-lo. Pouco depois, quando o carpinteiro tomava as medidas para o ataúde, viram através da janela que estava caindo uma garoa de minúsculas flores amarelas. Caíram a noite inteira sobre o povoado numa tempestade silenciosa, e cobriram os telhados e tamparam as portas e sufocaram os animais que dormiam na intempérie. Tantas flores caíram do céu, que as ruas amanheceram atapetadas por uma colcha compacta, e foi preciso abri-las de novo com pás e ancinhos para que o cortejo pudesse passar. (pg.180)

Carmelita Montiel, uma virgem de vinte anos, acabava de se banhar com água de flores de laranjeira e estava regando folhas de alecrim na cama de Pilar Ternera, quando soou o disparo. Aureliano José estava destinado a conhecer com ela a felicidade que Amaranta lhe negara, a ter sete filhos e a morrer de velhice em seus braços, mas a bala de fuzil que entrou pelas suas costas e despedaçou seu peito estava dirigida por uma equivocada interpretação das cartas. (pg.193)

Foi então que decidiu que nenhum ser humano, nem mesmo Úrsula, se aproximaria dele a menos de três metros. No centro do círculo de giz que seus ordenanças traçavam onde quer que ele chegasse, e no qual só ele podia entrar, decidia com ordens breves e inapeláveis o destino do mundo. (pg.203)

Na mesma noite em que sua autoridade foi reconhecida por todos os comandos rebeldes, despertou sobressaltado, pedindo aos gritos uma manta. Um frio interior que trincava seus ossos e o mortificava inclusive debaixo do sol a pino impediu-o de dormir bem durante vários meses, até que se converteu em costume. A embriaguez do poder começou a se decompor em rajadas de indiferença. Buscando um remédio contra o frio mandou fuzilar o jovem oficial que propusera o assassinato do general Teófilo Vargas. Suas ordens eram cumpridas antes de serem dadas, antes até de que ele as concebesse, e sempre chegavam muito mais longe do que ele teria se atrevido a fazê-las chegar. Extraviado na solidão de seu imenso poder, começou a perder o rumo. (pg.205)

Sentiu-se disperso, repetido, e mais solitário que nunca. (pg.205)

Ocupou uma cadeira entre seus assessores políticos, e envolto na manta de lã escutou em silêncio as breves propostas dos emissários. Pediam, em primeiro lugar, que ele renunciasse à revisão dos títulos de propriedade da terra para recuperar o apoio dos latifundiários liberais. Pediam, sem segundo lugar, que renunciasse à luta contra a influência clerical para obter o apoio do povo católico. Pediam, por último, que renunciasse às aspirações de igualdade de direitos entre os filhos naturais e os legítimos, para preservar a integridade dos lares.
- Quer dizer - sorriu o coronel Aureliano Buendía quando terminou a leitura - que só estamos lutando pelo poder. (pg.206)

Naquela noite interminável, enquanto o coronel Gerineldo Márquez evocava suas tardes mortas no quarto de costura de Amaranta, o coronel Aureliano Buendía raspou durante muitas horas, tratando de rompê-la, a dura casca de sua solidão. Seus únicos instantes felizes, desde a tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo, haviam transcorrido na oficina ourivesaria onde o tempo se esvaía enquanto ele armava peixinhos de ouro. Tinha precisado promover 32 guerras, e havia precisado violar todos os seus pactos com a morte a se revirar feito porco na pocilga da glória, para descobrir com quase quarenta anos de atraso os privilégios da simplicidade. (pg.208)

Fez então um último esforço para buscar em seu coração o lugar onde os afetos tinham apodrecido, e não conseguiu encontrá-lo. (pg.212)

- Perdão - desculpou-se diante do pedido de Úrsula. - É que a guerra acabou com tudo. (pg.212)

Olhou para o pátio, obedecendo a um costume da sua solidão, e então viu José Arcádio Buendía, empapado, triste de chuva e muito mais velho do que quando morrera. "Mataram Aureliano à traição - especificou Úrsula - e ninguém fez a caridade de fechar os olhos dele." (pg.217)

Desde aquela época o pároco manifestava os primeiros sintomas do delírio senil que o levou a dizer, anos mais tarde, que o diabo provavelmente havia ganho a rebelião contra Deus, e era quem estava sentado no trono celestial, sem revelar sua verdadeira identidade para pegar os incautos. (pg.224)

Quanto mais destampava champanha para ensopar os amigos, mais enlouquecidamente pariam seus animais, e mais ele se convencia de que sua boa estrela não tinha nada a ver com sua conduta mas com a influência de Petra Cotes, sua concubina, cujo amor tinha a virtude de exasperar a natureza. Estava tão convencido de ser esta a origem de sua fortuna que jamais deixou Petra Cotes ficar longe de sua criação, e mesmo quando se casou e teve filhos continuou vivendo com ela, com o consentimento de Fernanda. (pg.228)

Era tamanho o poder de sua presença que desde a primeira vez que foi visto na igreja todo mundo deu por certo que entre ele e Remédios, a Bela, havia se estabelecido um duelo calado e tenso um pacto secreto, um desafio irrevogável cuja culminação não podia ser somente o amor, mas também a morte. (pg.234)

- Vejam só - comentou. Era completamente abestalhado.
Parecia que uma lucidez penetrante permitia que ela visse a realidade das coisas muito além de qualquer formalismo. Esse era, pelo menos, o ponto de vista do coronel Aureliano Buendía, para quem Remédios, a Bela, não era de maneira alguma uma retardada mental, com ose pensava, muito pelo contrário. "É como se voltasse de vinte anos de guerra", costumava dizer. (pg.236)

Taciturno, silencioso, insensível ao novo sopro de vitalidade que estremeceu a casa, o coronel Aureliano Buendía quase conseguiu compreender que o segredo de uma boa velhice não é mais que um pacto honrado com a solidão. (pg.238)

Embora nunca os tivesse visto, nem ninguém os houvesse descrito, reconheceu de imediato os muros carcomidos pelo sal dos ossos, os decrépitos varandões suspensos de madeira carcomida pelos fungos, e cravado no portão e quase apagado pela chuva o cartãozinho mais triste do mundo: Vendem-se coroas fúnebres." (pg.246)

Em compensação, quando alguém do povoado teve a oportunidade de comprovar a crua realidade do telefone instalado na estação do trem, que por causa da manivela era considerado uma versão rudimentar do gramofone, até os mais incrédulos se desconcertaram. Era como se Deus tivesse resolvido pôr a prova toda a sua capacidade de assombro, e mantivesse os habitantes de Macondo num permanente vaivém entre o alvoroço e o desencanto, a dúvida e a revelação, até o extremo de ninguém conseguir saber ao certo onde estavam os limites da realidade. (pg.262)

Remédios, a Bela, ficou vagando pelo deserto da solidão, sem cruzes nas costas, amadurecendo em seus sonos sem pesadelos, em seus banhos intermináveis, em suas comidas sem horários, em seus profundos e prolongados silêncios sem memória. (pg.274)

"A única diferença atual entre liberais e conservadores é que os liberais vão à missa das cinco e os conservadores vão à missa das oito." (pg.280)

Amaranta, por seu lado, cuja dureza de coração a espantava, cuja concentrada amargura a amargava, revelou-se no último exame como a mulher mais terna que jamais existiu, e compreendeu com lastimosa clarividência que as injustas torturas a que havia submetido Pietro Crespi não tinham sido ditadas por uma vontade de vingança, como todo mundo achava, nem o lento martírio com que frustrou a vida do coronel Gerineldo Márquez havia sido determinado pelo fel ruim de sua amargura, como todo mundo achava, mas que as duas ações haviam sido uma luta de morte entre um amor sem medidas e uma covardia invencível, e que finalmente tinha triunfado o medo irracional que Amaranta sempre teve do seu próprio e atormentado coração. (pg.286)

Recordando essas coisas enquanto preparavam o baú de José Arcádio, Úrsula se perguntava se não era preferível deitar de uma vez na sepultura e que jogassem terra em cima, e perguntava a Deus, sem medo, se de verdade achava que as pessoas eram feitas de ferro para suportar tantos padecimentos e mortificações; e perguntando e perguntando ia atiçando sua própria confusão, e sentia uns desejos irreprimíveis de desandar e dizer palavrões e xingamentos como se fosse um daqueles forasteiros e de se permitir enfim um instante de rebeldia, o instante tantas vezes ansiado e tantas vezes adiado de mandar a resignação à merda, e cagar de uma vez para tudo, e arrancar do coração os infinitos montões de palavrões que tinha precisado engolir num século inteiro de conformismo. (pg.288)

Era tão urgente a paixão restaurada que em mais de uma ocasião se olharam nos olhos quando se preparavam para comer, e sem se dizer nada tamparam os pratos e foram morrer de fome e de amor no quarto. (pg.291)

Andava sem rumo, sem afetos, sem ambições, como uma estrela errante no sistema planetário de Úrsula. (pg.298)

Só que no instante final Amaranta não se sentiu frustrada, pelo contrário, sentiu-se liberada de qualquer amargura, porque a morte deparou-lhe o privilégio de se anunciar com vários anos de antecipação. Viu-a num meio-dia ardente, costurando com ela na varanda das begônias, pouco depois que Meme foi para o colégio. Reconheceu-a no ato e não havia nada de pavoroso na morte, porque era uma mulher vestida de azul e com os cabelos longos, de aspecto um pouco antiquado, e um tanto parecida com a Pilar Ternera da época em que a ajudava nos ofícios da cozinha. (pg.314)

Durante o dia os militares andavam pela correnteza das ruas, com as calças enroladas até a metade das pernas, brincando de naufrágio com as crianças. De noite, após o toque de recolher, derrubavam as portas a coronhadas de fuzil, arrancavam os suspeitos de suas camas e os levavam numa viagem sem volta. Era ainda a busca e o extermínio dos malfeitores, assassinos, incendiários e revoltosos do Decreto Número Quatro, mas os militares negavam tudo aos próprios parentes de suas vítimas que lotavam o escritório dos comandantes à procura de notícias. "Com certeza foi um sonho", insistiam os oficiais. "Em Macondo não aconteceu nada, nem está acontecendo, nem acontecerá nunca. Este é um povo feliz." Assim consumaram o extermínio dos chefes sindicais." (pg.345)

E quanto menos compreendia, maior era o prazer. (pg.348)

Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias. (pg.349)

- Adeus, Gerineldo, filho meu - gritou. - Mande lembranças para a minha gente, e diga lá que nos veremos quando parar de chover.
Aureliano Segundo ajudou-a a voltar para a cama, e com a mesma informalidade com que sempre a tratava perguntou o que queria dizer com aquela despedida.
- É verdade - disse ela. - Só estou esperando a chuva passar para morrer. (pg.354)

Aureliano segundo perguntou a eles com sua informalidade habitual de que recursos misteriosos tinham se valido para não naufragar na tormenta, como diabos tinham feito para não se afogar, e um atrás do outro, de porta em porta, devolveram a ele um sorriso ladino e um olhar sonhador, e todos deram, sem ter combinado, a mesma resposta:
- Nadando. (pg.366)

Foi uma ação tão rápida, metódica e brutal, que pareceu um assalto de militares. Aureliano, trancado no seu quarto, não percebeu nada. Naquela tarde, tendo sentido sua falta na cozinha, procurou José Arcádio pela casa inteira, e encontrou-o flutuando nos reflexos perfumados da tina, enorme e tumefacto, e ainda pensando em Amaranta. Só então compreendeu o quanto havia começado a gostar dele. (pg.408)

Ele não tinha pensado até aquele momento que a literatura fosse o melhor brinquedo que haviam inventado para zombar das pessoas. (pg.420)

E sem que ele tivesse revelado que estava chorando de amor ela reconheceu de imediato o pranto mais antigo da história do homem. (pg.428)

Álvaro foi o primeiro que seguiu o conselho de abandonar Macondo. Vendeu tudo, até a onça cativa que zombava dos transeuntes no quintal de sua casa, e comprou uma passagem eterna em um trem que nunca acabava de viajar. (pg.433)

A moça de suéter vermelho que pintava aquarelas no lago de Michigan e que fez para ele, com os pincéis, um adeus que não era de despedida mas de esperança, porque não sabia estava vendo passar um trem sem volta. (pg.434)

Reclusos pela solidão e pelo amor e pela solidão do amor. (pg.435)

Muitas vezes foram despertados pelo flanar dos mortos. Ouviram Úrsula lutando com as leis da criação para preservar a estirpe, e José Arcádio Buendía buscando a verdade quimérica dos grandes inventos, e Fernanda rezando, e o coronel Aureliano Buendía embrutecendo-se com enganos de guerras e peixinhos de ouro, e Aureliano Segundo agonizando de solidão no aturdimento das farras, e então aprenderam que as obsessões dominantes prevalecem contra a morte, e tornaram a ser felizes com a certeza de que eles continuariam se amando com suas naturezas de assombrações muito depois que outras espécies de animais futuros arrebatassem dos insetos o paraíso de miséria que os insetos estavam acabando de arrebatar dos homens. (pg.442)

E naquele relampejar de lucidez teve consciência de que era incapaz de aguentar em cima da alma o tremendo peso de tanto passado. (pg.445)

Macondo já era um pavoroso redemoinho de poeira e escombros centrifugados pela cólera do furacão bíblico quando Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo em fatos demasiado conhecidos e começou a decifrar o instante que estava vivendo, decifrando conforme vivia esse instante, profetizando a si mesmo no ato de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse se vendo num espelho falado. (pg.447)

domingo, 23 de agosto de 2015

Sea Wolf #trechos #músicas

"Tonight i will love you forever." (Middle Distance Runner)

"I need some cool autumn air in this baroque hotel room." (Blue Stockings)

domingo, 16 de agosto de 2015

Fahrenheit 451 (Ray Bradbury - 1953) #trechos

"Certa vez, quando criança, durante uma queda de energia, sua mãe havia encontrado e acendido uma última vela e houve um breve instante de redescoberta, de uma iluminação tal que o espaço perdera suas vastas dimensões e se fechara aconchegante em torno deles, mãe e filho, a sós, transformados, torcendo para que a energia não voltasse tão cedo..."

"Bem, afinal de contas, estamos na era do lenço descartável. Assoe seu nariz numa pessoa, encha-a, esvazie-a, procure outra, assoe, encha, esvazie. Cada um está usando as fraldas da camisa do outro."

"E lembrou-se de ter pensado naquela hora que, se ela morresse, decerto ele não choraria. Pois seria a morte de uma desconhecida, um rosto da rua, uma foto do jornal e, de repente, não pela morte, mas pela ideia de pensar em não chorar diante da morte, um homem ridículo e vazio junto de uma mulher ridícula e vazia."

"Não se pode construir uma casa sem pregos e madeira. Se você não quiser que se construa uma casa, esconda os pregos e a madeira. Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver, dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele se esqueça de que há uma coisa como a guerra. Se o governo é ineficiente, despótico e ávido por impostos, melhor que ele seja tudo isso do que as pessoas se preocuparem com isso. Paz, Montag. Promova concursos em que vençam as pessoas que se lembrarem da letra das canções mais populares ou dos nomes das capitais dos estados ou de quanto foi a safra do milho no ano anterior. Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto com "fatos" que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente "brilhantes" quanto a informações. Assim, elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia. Todo homem capaz de desmontar um telão e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. Eu sei porque já tentei. Para o inferno com isso! Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a ver com reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada, estimulem-me com o teremim, com muito barulho. Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de uma reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo que peço é um passatempo sólido."

"'Não se pode precisar o momento em que uma amizade se forma. Como ao encher gota a gora uma vasilha, há, no final, uma gota que a faz transbordar, assim, também, em uma série de gentilezas, há uma que, por fim, faz o coração transbordar.'"

"Será porque estamos nos divertindo tanto em casa que nos esquecemos do mundo? Será porque somos tão ricos e o resto do mundo tão pobre e simplesmente não damos a mínima para sua pobreza? Tenho ouvido rumores; o mundo está passando fome, mas nós estamos bem alimentados. Será verdade que o mundo trabalha duro enquanto nós brincamos? Será por isso que somos tão odiados? Ouvi rumores sobre ódio, também, esporadicamente ao longo dos anos. Você sabe por quê? Eu não, com certeza que não! Talvez os livros possam nos tirar um pouco dessas trevas. Ao menos poderiam nos impedir de cometer os mesmos erros malucos!"

"'Eu não falo de coisas, senhor', disse Faber. 'Falo do sentido das coisas. Sento-me aqui e sei que estou vivo.'"

"Cristo agora é um da 'família'. Muitas vezes me pergunto se Deus reconhece Seu próprio filho do jeito que o vestimos, ou devo dizer despimos? Ele é agora uma guloseima em bastão, feita de açúcar cristal e sacarina, quando não está fazendo referências veladas a certos produtos comerciais de que todo fiel absolutamente necessita."

"- Ninguém mais presta atenção. Não posso falar com as paredes porque elas estão gritando para mim. Não posso falar com minha mulher, ela escuta as paredes. Eu só quero alguém para ouvir o que tenho a dizer. E talvez, se eu falar por tempo suficiente, minhas palavras façam sentido. E quero que você me ensine a entender o que leio."

"Os livros eram só um tipo de receptáculo onde armazenávamos muitas coisas que receávamos esquecer. Não ha neles nada de mágico. A magia está apenas no que os livros dizem, no modo como confeccionavam um traje para nós a partir de retalhos do universo."

"Você sabe por que livros como este são tão importantes? Porque têm qualidade. E o que significa a palavra qualidade? Para mim significa textura. Este livro tem poros. Tem feições. Este livro poderia passar pelo microscópio. Você encontraria vida sob a lâmina, emanando em profusão infinita. Quanto mais poros, quanto mais detalhes de vida fielmente gravados por centímetro quadrado você conseguir captar numa folha de papel, mais 'literário' você será. Pelo menos, esta é a minha definição. Detalhes reveladores. Detalhes frescos. Os bons escritores quase sempre tocam a vida. Os medíocres apenas passam rapidamente a mão sobre ela. Os ruins a estupram e a deixam para as moscas. Entende agora por que os livros são odiados e temidos? Eles mostram os poros no rosto da vida. Os que vivem no conforto querem apenas rostos com cara de lua de cera, sem poros nem pelos, inexpressivos. Estamos vivendo num tempo em que as flores tentam viver de flores, e não com a boa chuva e o húmus preto."

"Não peça garantias. E não espere ser salvo por uma coisa, uma pessoa, máquina ou biblioteca. Trate de agarrar a sua própria tábua e, se você se afogar, pelo menos morra sabendo que estava no rumo da costa."

"Os que não constroem precisam queimar. Isso é tão antigo quanto a história e os delinquentes juvenis."

"Dava para sentir a guerra se preparando no céu naquela noite. O modo como as nuvens se afastavam e voltavam e a aparência das estrelas, um milhão delas nadando entre as nuvens, como os discos inimigos, e a sensação de que o céu poderia cair sobre a cidade e transformá-la em pó de gis, e a lua se elevar em chamas vermelhas, era assim que a noite parecia estar."

"- Ah, amor, sejamos fiéis
Um ao outro! pois o mundo, que parece
Estender-se diante de nós como uma terro de sonhos,
Tão vário, tão belo, tão novo,
Não tem realmente alegria, nem amor, nem luz,
Nem certeza, nem paz, nem remédio para a dor;
E estamos aqui como numa planície sombria
Varrida por alarmes confusos de luta e fuga,
Onde cegos exércitos travam combate na noite."
(A praia de Dover)

"Você está com medo de cometer erros. Não tenha. Os erros podem ser proveitosos. Quando eu era jovem, Montag, eu atirava minha ignorância na cara das pessoas. Elas me surravam com varas. Quando cheguei aos quarenta, minha faca cega já estava muito bem afiada para mim. Se você esconder sua ignorância ninguém lhe baterá e você nunca irá aprender."

"A casa de Faber seria o lugar em que ele poderia realimentar sua crença, que rapidamente se esvaía, em sua própria capacidade de sobreviver. Ele só queria saber que havia no mundo um homem como Faber."

"- Meu Deus, como isso aconteceu? - disse Montag. - Numa noite está tudo bem e na seguinte estou me afogando, Quantas vezes um homem pode afundar e ainda continuar vivo?"

"'Encha seus olhos de admiração', dizia ele, 'viva como se fosse cair morto daqui a dez segundos. Veja o mundo. Ele é mais fantástico do que qualquer sonho que se possa produzir nas fábricas. Não peça garantias, não peça segurança, jamais houve semelhante anima. E se houvesse, seria parente do grande bicho-preguiça pendurado de cabeça para baixo numa árvore o dia inteiro, todos os dias, a vida inteira dormindo. Para o inferno com isso', dizia ele, 'balance a árvore e derrube o grande bicho-preguiça de bunda no chão.'"

sábado, 15 de agosto de 2015

Monty Pyhton - Transcrição da esquete do Papagaio Morto #roteiros

(John Cleese entra em um Pet Shop com uma gaiola onde há um papagaio morto e se dirige ao caixa.)

John Cleese: Olá, eu gostaria de registrar uma queixa. // Olá? Moça?

Michael Palin: O que você quer dizer com "moça"?

JC: Desculpe-me, eu peguei um resfriado. Eu gostaria de fazer uma reclamação.

MP: Desculpe, estamos fechando para o almoço.

JC: Isso não importa, meu jovem. Quero reclamar sobre esse papagaio que comprei meia hora atrás nessa loja.

MP: Sim, o Norueguês Azul... mas o que há de errado com ele?

JC: Vou dizer o que há de errado com ele. Está morto. É isso que há de errado com ele.

MP: Não, não. Está dormindo. Olhe!

JC: Olhe, meu jovem, eu conheço um papagaio morto quando vejo um, e estou olhando para um agora mesmo.

MP: Não, não, senhor. Não está morto. Está dormindo.

JC: Dormindo?

MP: Sim. Excelente pássaro o Norueguês Azul.

JC: A plumagem não tem nada a ver. Está morto como uma pedra.

MP: Não, não. Está dormindo!

JC: Tudo bem, então, se ele está dormindo, irei acordá-lo. // Olá Polly! Tenho um belo molusco para você quando você acordar, Polly!

(Michael dá um empurrão na gaiola)

MP: Veja! Ele se mexeu!

JC: Não, não mexeu! Só quando você bateu na gaiola.

MP: Eu não bati!

JC: Sim, você bateu!

(John grita no "ouvido" do pássaro.)

JC: Olá, Polly! Polly! (John bate o pássaro na mesa.) Polly, acorde! Polly! // Agora, isso é o que eu chamo de um papagaio morto.

MC: Não, não. Está abalado.

JC: Olha, meu jovem, já aguentei o suficiente disso. Aquele papagaio definitivamente está morto. E quando eu o comprei há meia hora atrás você me garantiu que sua falta de movimentos era porque estava cansado e tinha acabado de ter relações sexuais.

MP: Bem, senhor... está provavelmente desejando pelas lagoas.

JC: "Desejando pelas lagoas"? Que tipo de conversa é essa? Olhe, por que ele caiu de costas na hora em que eu cheguei em casa?

MP: O Norueguês Azul prefere dormir de costas. É um lindo pássaro, plumagem formosa.

JC: Olhe, eu tomei a liberdade de examinar o papagaio e eu descobri que a única razão para que ele estivesse sentado antes de cair era que ele estava pregado ali.

MP: Bem, é claro que ele foi pregado ali. Senão ele iria forçar as barras e boom!

JC: Olhe, amigo... esse papagaio não voaria nem se você desse um choque de 4000 volts nele. Ele está realmente morto.

MP: Não está! Está com saudades!

JC: Não está com saudades. Ele faleceu! Esse papagaio não é mais. Ele parou de ser. Ele expirou e foi encontrar com o Criador. É um papagaio falecido. É um cadáver. Sem vida, ele descansa em paz. Se você não o tivesse pregado, ele teria sido puxado para o céu. Ele abriu as cortinas e juntou-se ao coral invisível. Isso é um ex-papagaio.

MP: Bem, seria melhor eu trocá-lo então.

JC: Se você quiser qualquer coisa nesse país você tem que reclamar até não aguentar mais.

MP: Desculpe, chefe, estamos sem papagaios.

JC: Entendo. Entendo completamente.

MP: Tenho uma lesma.

JC: Ela fala?

MP: Não. Na verdade não.

JC: Bem, isso não é bem uma troca, é?

MP: Ouça! Irei lhe dizer o que fazer. Se você for ao pet shop do meu irmão em Bolton, ele irá trocar o papagaio para você.

JC: Bolton?

MP: Sim.

JC: Certo.

(John Cleese chega a um pet shop similar. Michael usa um bigode. John Cleese reconhece a gaiola que havia deixado no outro pet shop.)

JC: Com licença. Aqui é Bolton, não é?

MP: Não, não. É Ipswich.

JC: Isso é uma viagem intermunicipal.

(John vai ao posto de reclamações, onde é atendido por Terry Jones.)

JC: Eu gostaria de fazer uma reclamação.

Terry Jones: Eu não tenho que fazer isso.

JC: Perdão?

TJ: Eu sou um cirurgião cerebral. Eu faço isso somente porque eu gosto de ser meu próprio chefe.

JC: Desculpe-me, isso é irrelevante, não é?

TJ: Sim. Não é fácil caminhar 30 minutos.

JC: Bem, eu gostaria de fazer uma reclamação. Eu peguei o trem para Bolton e acabei vindo parar em Ipswich.

TJ: Não. Aqui é Bolton.

JC: O irmão do dono do pet shop estava mentindo.

TJ: Bem, você não pode culpar a companhia ferroviária britânica.

JC: Se aqui é Bolton eu deveria voltar ao pet shop.

(De volta ao pet shop)

JC: Entendo que aqui é Bolton.

MP: Sim.

JC: Bem, você me disse que era Ipswich.

MP: Era um trocadilho.

JC: Um trocadilho?

MP: Não, não um trocadilho. Como se chama a palavra que é a mesma coisa de trás para frente?

JC: Palíndromo?

MP: Sim, sim.

JC: Isso não é um palíndromo. O palíndromo de Bolton seria "notlob". Isso não funciona.

MP: Olhe, o que você quer?

JC: Desculpe-me. Não estou preparado para seguir a minha fala de investigação enquanto eu acho que está ficando idiota.

(Entra Graham Chapman vestido como policial.)

Graham Chapman: Completamente de acordo. Idiota, idiota. Certo, vamos lá! Vamos lá!

(Eric Idle aparece como apresentador de noticiário comendo um iogurte.)

Eric Idle: Desculpem-me. E agora... nudez frontal.

Fim!

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Clarice Falcão #cançãoemprosa #trechos

Oitavo Andar

"Quando eu te vi fechar a porta eu pensei em me atirar pela janela do oitavo andar. Onde a dona Maria mora, porque ela me adora e eu sempre posso entrar. Era bem o tempo de você chegar no T, olhar no espelho o seu cabelo, falar com o seu Zé, e me ver caindo em cima de você como uma bigorna cai em cima de um cartoon qualquer.

E aí, só nós dois no chão frio, de conchinhas bem no meio fio. No asfalto riscados de giz, imagina que cena feliz! Quando os paramédicos chegassem, e os bombeiros retirassem nossos corpos do Leblon, a gente ia para o necrotério, ficar brincando de sério, deitadinhos no bem-bom. Cada um feito um picolé, com a mesma etiqueta no pé. Na autópsia daria para ver como eu só morri por você.

Quando eu te vi fechar a porta eu pensei em me atirar pela janela do oitavo andar. Invés disso eu dei meia volta e comi uma torta inteira de amora no jantar."


Capitão Gancho

"Se não fossem as minhas malas cheias de memórias, ou aquela história que faz mais de um ano, não fossem os danos não seria eu. Se não fossem as minhas tias com todos os mimos, ou se eu menino fosse mais amado, se não desse errado não seria eu.

Se o fato é que eu sou muito do seu desagrado não quero ser chato, mas vou ser honesto: eu não sei o que você tem contra mim. Você pode tentar por horas me deixar culpado, mas vai dar errado já que foi o resto da vida inteira que me fez assim.

Se não fossem os ais, e não fosse a dor, e essa mania de lembrar de tudo feito um gravador. Se não fosse Deus bancando o escritor. Se não fosse o Mickey, e as terças-feiras, e os ursos pandas, e o andar de cima da primeira casa em que eu morei e dava para chegar no morro só pela varanda. Se não fosse a fome, e essas crianças, e esse cachorro, e o Sancho Pança. Se não fosse o Koni e o Capitão Gancho, não seria eu."