Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. (pg.43)
O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome, e para mencioná-las era preciso apontar com o dedo. (pg.43)
"As coisas têm vida própria" - apregoava o cigano com sotaque áspero -, "é só questão de despertar suas almas." (pg.43)
A única coisa que conseguiu foi desenterrar uma armadura do século XV com todas as suas partes soldadas por uma casca de ferrugem, cujo interior tinha a ressonância oca de uma enorme cabaça cheia de pedras. Quando José Arcádio Buendía e os quatro homens de sua expedição conseguiram desmontar a armadura, encontraram dentro dela um esqueleto calcificado que levava dependurado no pescoço um relicário de cobre com um cacho de cabelo de mulher." (pg.44)
Era um fugitivo de todas as pragas e catástrofes que haviam flagelado o gênero humano. Sobrevivera à palagra na Pérsia, ao escorbuto no arquipélago da Malásia, à lepra em Alexandria, ao beribéri no Japão, à peste bubônica em Madagascar, ao terremoto da Sicília e a um naufrágio multitudinário no estreito de Magalhães. (pg.47)
"No mundo estão acontecendo coisas incríveis", dizia a Úrsula. "Ali mesmo, do lado de lá do rio, existe tudo que é tipo de aparelho mágico, enquanto nós continuamos vivendo feito burros". (pg.50)
e o mundo ficou triste para sempre. (pg.53)
Achar o galeão, indício da proximidade do mar, estraçalhou o ímpeto de José Arcádio Buendía. Considerava uma ironia de seu travesso destino ter buscado o mar sem encontrá-lo, ao preço de sacrifícios e penas sem conta, e ter encontrado o mar sem buscá-lo, atravessado em seu caminho como um obstáculo invencível. (pg.54)
"Já que ninguém quer ir embora, vamos sozinhos." Úrsula não se alterou.
- Não vamos não - disse ela. - Nós ficamos aqui, porque aqui tivemos um filho.
- Mas ainda não temos um morto - disse ele. - E a gente é de lugar nenhum enquanto não tem um morto debaixo deste lugar.
Úrsula replicou, com uma suave firmeza:
- Pois se for preciso que eu morra para que vocês fiquem aqui, então eu morro. (pg.55)
José Arcádio Buendía, sem entender, estendeu a mão até o bloco de gelo, mas o gigante não deixou. "Para tocar, são mais cinco pesos", disse. José Arcádio Buendía pagou, e então pôs a mão sobre o gelo, e a manteve por vários minutos, enquanto seu coração se inchava de temos e de júbilo graças ao contato com o mistério. Sem saber o que fizer, pagou mais dez pesos para que seus filhos vivessem a prodigiosa experiência. O pequeno José Arcádio se negou a tocar. Aureliano, porém, deu um passo adiante, pôs a mão e a retirou no ato. "Está fervendo", exclamou assustado. (pg.59)
"Vestiu-se às apalpadelas, ouvindo na escuridão a repousada respiração do irmão, a tosse seca do pai no quarto vizinho, a asma das galinhas no quintal, o zumbido dos mosquitos, o bumbo do seu coração e a algazarra sem-fim do mundo, que ele não tinha percebido até então, e saiu pela rua adormecida." (pg.68)
Haviam, sim, contraído a enfermidade da insônia. Úrsula, que tinha aprendido com a mãe o valor medicinal das plantas, preparou e fez todos tomarem uma beberagem de acônito, mas não conseguiram dormir e passaram o dia inteiro sonhando acordados. Nesse estado de alucinada lucidez não apenas viam as imagens de seus próprios sonhos, mas uns viam as imagens sonhadas pelos outros. Era como se a casa tivesse se enchido de visitas. (pg.86)
E assim continuaram vivendo numa realidade escorregadia, momentaneamente capturada pelas palavras, mas que fugiria sem remédio quando fosse esquecido o valor da letra escrita.
Na entrada do caminho do pantanal tinha sido colocado um anúncio que dizia Macondo, e outro maior na rua central que dizia Deus existe. Em todas as casas tinham sido escritas palavras para memorizar os objetos e os sentimentos. Mas o sistema exigia tamanha vigilância e tanta fortaleza moral que muitos sucumbiram ao feitiço de uma realidade imaginária, inventada por eles mesmos, que acabou sendo menos prática, porém mais reconfortante. Pilar Ternera foi quem mais contribuiu para popularizar essa mistificação, quando concebeu o artifício de ler o passado nas cartas do baralho, da mesma forma que antes lia o futuro. (pg.89)
O cigano chegava disposto a ficar no povoado. Havia estado na morte, era verdade, mas tinha regressado porque não conseguiu aguentar a solidão. Repudiado pela sua tribo, desprovido de qualquer faculdade sobrenatural como castigo por sua fidelidade à vida, decidiu refugiar-se naquele rincão do mundo ainda não descoberto pela morte, dedicado à exploração de um laboratório de daguerreotipia. (pg.91)
Francisco, o Homem, que assim era chamado por ter derrotado o diabo num duelo de repentes, e cujo verdadeiro nome ninguém jamais fico sabendo, desapareceu de Macondo durante a peste da insônia e certa noite reapareceu sem aviso algum na taberna de Catarino. (pg.93)
Rebeca esperava o amor às quatro da tarde bordando ao lado da janela. Sabia que a mula do correio só chegava a cada quinze dias, mas esperava sempre, convencida de que ia chegar num dia qualquer por engano. Aconteceu exatamente o contrário: uma vez a mula não chegou no dia previsto. Louca de desesperação, Rebeca se levantou à meia-noite e comeu punhados de terra no jardim, com uma avidez suicida, chorando de dor e de fúria, mastigando minhocas tenras e trincando os dentes nas carapaças dos caracóis. Vomitou até o amanhecer. Afundou num estado de prostração febril, perdeu a consciência, e seu coração abriu-se num delírio sem pudor. (pg.107)
Anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, Arcádio haveria de se lembrar do tremor com que Melquíades o fez ouvir várias páginas de sua escrita impenetrável, que é claro que não entendeu, mas que ao serem lidas em voz alta pareciam encíclicas cantadas. (pg.113)
Fatigou-se tanto com a febre da insônia, que certa madrugada não conseguiu reconhecer o ancião de cabeça branca e gestos incertos que entrou no seu quarto. Era Prudência Aguilar. Quando enfim o identificou, assombrado de que os mortos também envelhecessem, José Arcádio Buendía sentiu-se sacudido pela nostalgia. "Prudêncio - exclamou - como é que você veio parar tão longe!". Depois de tantos anos de morte, era tão intensa a saudade dos vivos, tão urgente a necessidade de companhia, tão aterradora a proximidade da outra morte que existia dentro da morte, que Prudêncio Aguilar havia terminado por gostar do pior de seus inimigos. Levava muito tempo procurando por ele. Perguntava aos mortos de Riohacha, aos mortos que chegavam do Vale do Upar, aos que chegavam do pantanal, e ninguém sabia dar com ele, porque Macondo era um povoado desconhecido para os mortos até que chegou Melquíades e apontou um pontinho negro nos coloridos mapas da morte. (pg.119)
Cansado de pregar no deserto, o padre Nicanor resolveu empreender a construção de um templo, o maior do mundo, com santos em tamanho natural e vidros coloridos nas paredes, para que gente até de Roma fosse honrar a Deus naquele centro de impiedade. Andava por todos os lados pedindo esmola com um pratinho de cobre. (pg.123)
Até mesmo a simples ideia de pensar em uma nova data para o casamento teria sido tão irreverente, que o noivado se transformou em uma relação eterna, um amor de cansaço com o qual ninguém tornou a se preocupar, como se os namorados que eu outros dias desarmavam as lamparinas para se beijar tivessem sido abandonados aos caprichos da morte. Perdido o rumo, completamente desmoralizada, Rebeca tornou a comer terra. (pg.130)
"Você é mulher demais, irmãzinha." Rebeca perdeu o domínio de si mesma. Voltou a comer terra e cal das paredes com a avidez de outros dias, e chupou o dedo com tanta ansiedade que formou um calo no polegar. Vomitou um líquido verde com sanguessugas mortas. (pg.133)
Porque tinha a rara virtude de não existir por completo a não ser no momento oportuno. (pg.153)
Pensava em sua gente sem sentimentalismo, num severo acerto de contas com a vida, começando a compreender o quanto na verdade amava as pessoas que mais havia odiado. (pg.159)
Na escola destruída onde experimentou pela primeira vez a segurança do poder, a poucos metros de onde conheceu a incerteza do amor, Arcádio achou ridículo o formalismo da morte. Na verdade não se importava com a morte mas com a vida, e por isso a sensação que sentiu quando pronunciaram a sentença não foi uma sensação de medo e sim de nostalgia. (pg.159)
"Ai, caralho! - chegou a pensar - esqueci de dizer que se nascer mulher ponham o nome de Remédios." (pg.160)
Não sentiu medo, nem nostalgia, mas uma raiva intestinal diante da ideia de que aquela morte artificiosa não lhe permitia conhecer o final de tantas coisas que deixava sem terminar. (pg.166)
"Tanto se foder", murmurava o coronel Aureliano Buendía. "Tanto se foder para acabar morto por seis maricas, e sem poder fazer nada." Repetia isso com tamanha raiva que quase parecia fervor, e o capitão Roque Carnicero se comoveu porque achou que ele estava rezando. (pg.168)
MISE EN ABYME:
Mas na verdade a única pessoa naquele tempo com quem ele conseguia manter contato era Prudêncio Aguilar. Já quase pulverizado pela profunda decrepitude da morte, Prudêncio Aguilar ia duas vezes por dia conversar com ele. Falavam de galos de briga. Prometiam um ao outro montar uma criação de animais magníficos, não tanto para desfrutar de vitórias que já não lhes fariam falta, mas para terem alguma coisa com que se distrair nos tediosos domingos da morte. Era Prudêncio Aguilar quem o limpava, lhe dava de comer e levava notícias esplêndidas de um desconhecido que se chamava Aureliano e era coronel na guerra. Quando estava sozinho, José Arcádio Buendía se consolava com o sonho dos quartos infinitos. Sonhava que se levantava da cama, abria a porta e passava para outro quarto igual, com a mesma cama de cabeceira de ferro batido, a mesma poltrona de vime e o mesmo quadrinho da Virgem dos Remédios na parede dos fundos. Desse quarto passava a outro exatamente igual, cuja porta abria para passar a outro exatamente igual, e depois a outro exatamente igual, até o infinito. Gostava de ir de quarto em quarto, como numa varanda de espelhos paralelos, até que Prudêncio Aguilar tocava seu ombro. Então regressava de quarto em quarto, despertando para trás, percorrendo o caminho inverso, e encontrava Prudêncio Aguilar no quarto da realidade. Mas certa noite, duas semanas depois de ter sido levado para a cama, Prudêncio Aguilar tocou em seu ombro num quarto intermediário, e ali ele ficou para sempre, achando que era o quarto real. (pg.179)
- Vim para o funeral do Rei.
Então entraram no quarto de José Arcádio Buendía, o sacudiram com todas as forças, gritaram em seu ouvido, puseram um espelho diante de suas narinas, mas não conseguiram despertá-lo. Pouco depois, quando o carpinteiro tomava as medidas para o ataúde, viram através da janela que estava caindo uma garoa de minúsculas flores amarelas. Caíram a noite inteira sobre o povoado numa tempestade silenciosa, e cobriram os telhados e tamparam as portas e sufocaram os animais que dormiam na intempérie. Tantas flores caíram do céu, que as ruas amanheceram atapetadas por uma colcha compacta, e foi preciso abri-las de novo com pás e ancinhos para que o cortejo pudesse passar. (pg.180)
Carmelita Montiel, uma virgem de vinte anos, acabava de se banhar com água de flores de laranjeira e estava regando folhas de alecrim na cama de Pilar Ternera, quando soou o disparo. Aureliano José estava destinado a conhecer com ela a felicidade que Amaranta lhe negara, a ter sete filhos e a morrer de velhice em seus braços, mas a bala de fuzil que entrou pelas suas costas e despedaçou seu peito estava dirigida por uma equivocada interpretação das cartas. (pg.193)
Foi então que decidiu que nenhum ser humano, nem mesmo Úrsula, se aproximaria dele a menos de três metros. No centro do círculo de giz que seus ordenanças traçavam onde quer que ele chegasse, e no qual só ele podia entrar, decidia com ordens breves e inapeláveis o destino do mundo. (pg.203)
Na mesma noite em que sua autoridade foi reconhecida por todos os comandos rebeldes, despertou sobressaltado, pedindo aos gritos uma manta. Um frio interior que trincava seus ossos e o mortificava inclusive debaixo do sol a pino impediu-o de dormir bem durante vários meses, até que se converteu em costume. A embriaguez do poder começou a se decompor em rajadas de indiferença. Buscando um remédio contra o frio mandou fuzilar o jovem oficial que propusera o assassinato do general Teófilo Vargas. Suas ordens eram cumpridas antes de serem dadas, antes até de que ele as concebesse, e sempre chegavam muito mais longe do que ele teria se atrevido a fazê-las chegar. Extraviado na solidão de seu imenso poder, começou a perder o rumo. (pg.205)
Sentiu-se disperso, repetido, e mais solitário que nunca. (pg.205)
Ocupou uma cadeira entre seus assessores políticos, e envolto na manta de lã escutou em silêncio as breves propostas dos emissários. Pediam, em primeiro lugar, que ele renunciasse à revisão dos títulos de propriedade da terra para recuperar o apoio dos latifundiários liberais. Pediam, sem segundo lugar, que renunciasse à luta contra a influência clerical para obter o apoio do povo católico. Pediam, por último, que renunciasse às aspirações de igualdade de direitos entre os filhos naturais e os legítimos, para preservar a integridade dos lares.
- Quer dizer - sorriu o coronel Aureliano Buendía quando terminou a leitura - que só estamos lutando pelo poder. (pg.206)
Naquela noite interminável, enquanto o coronel Gerineldo Márquez evocava suas tardes mortas no quarto de costura de Amaranta, o coronel Aureliano Buendía raspou durante muitas horas, tratando de rompê-la, a dura casca de sua solidão. Seus únicos instantes felizes, desde a tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo, haviam transcorrido na oficina ourivesaria onde o tempo se esvaía enquanto ele armava peixinhos de ouro. Tinha precisado promover 32 guerras, e havia precisado violar todos os seus pactos com a morte a se revirar feito porco na pocilga da glória, para descobrir com quase quarenta anos de atraso os privilégios da simplicidade. (pg.208)
Fez então um último esforço para buscar em seu coração o lugar onde os afetos tinham apodrecido, e não conseguiu encontrá-lo. (pg.212)
- Perdão - desculpou-se diante do pedido de Úrsula. - É que a guerra acabou com tudo. (pg.212)
Olhou para o pátio, obedecendo a um costume da sua solidão, e então viu José Arcádio Buendía, empapado, triste de chuva e muito mais velho do que quando morrera. "Mataram Aureliano à traição - especificou Úrsula - e ninguém fez a caridade de fechar os olhos dele." (pg.217)
Desde aquela época o pároco manifestava os primeiros sintomas do delírio senil que o levou a dizer, anos mais tarde, que o diabo provavelmente havia ganho a rebelião contra Deus, e era quem estava sentado no trono celestial, sem revelar sua verdadeira identidade para pegar os incautos. (pg.224)
Quanto mais destampava champanha para ensopar os amigos, mais enlouquecidamente pariam seus animais, e mais ele se convencia de que sua boa estrela não tinha nada a ver com sua conduta mas com a influência de Petra Cotes, sua concubina, cujo amor tinha a virtude de exasperar a natureza. Estava tão convencido de ser esta a origem de sua fortuna que jamais deixou Petra Cotes ficar longe de sua criação, e mesmo quando se casou e teve filhos continuou vivendo com ela, com o consentimento de Fernanda. (pg.228)
Era tamanho o poder de sua presença que desde a primeira vez que foi visto na igreja todo mundo deu por certo que entre ele e Remédios, a Bela, havia se estabelecido um duelo calado e tenso um pacto secreto, um desafio irrevogável cuja culminação não podia ser somente o amor, mas também a morte. (pg.234)
- Vejam só - comentou. Era completamente abestalhado.
Parecia que uma lucidez penetrante permitia que ela visse a realidade das coisas muito além de qualquer formalismo. Esse era, pelo menos, o ponto de vista do coronel Aureliano Buendía, para quem Remédios, a Bela, não era de maneira alguma uma retardada mental, com ose pensava, muito pelo contrário. "É como se voltasse de vinte anos de guerra", costumava dizer. (pg.236)
Taciturno, silencioso, insensível ao novo sopro de vitalidade que estremeceu a casa, o coronel Aureliano Buendía quase conseguiu compreender que o segredo de uma boa velhice não é mais que um pacto honrado com a solidão. (pg.238)
Embora nunca os tivesse visto, nem ninguém os houvesse descrito, reconheceu de imediato os muros carcomidos pelo sal dos ossos, os decrépitos varandões suspensos de madeira carcomida pelos fungos, e cravado no portão e quase apagado pela chuva o cartãozinho mais triste do mundo: Vendem-se coroas fúnebres." (pg.246)
Em compensação, quando alguém do povoado teve a oportunidade de comprovar a crua realidade do telefone instalado na estação do trem, que por causa da manivela era considerado uma versão rudimentar do gramofone, até os mais incrédulos se desconcertaram. Era como se Deus tivesse resolvido pôr a prova toda a sua capacidade de assombro, e mantivesse os habitantes de Macondo num permanente vaivém entre o alvoroço e o desencanto, a dúvida e a revelação, até o extremo de ninguém conseguir saber ao certo onde estavam os limites da realidade. (pg.262)
Remédios, a Bela, ficou vagando pelo deserto da solidão, sem cruzes nas costas, amadurecendo em seus sonos sem pesadelos, em seus banhos intermináveis, em suas comidas sem horários, em seus profundos e prolongados silêncios sem memória. (pg.274)
"A única diferença atual entre liberais e conservadores é que os liberais vão à missa das cinco e os conservadores vão à missa das oito." (pg.280)
Amaranta, por seu lado, cuja dureza de coração a espantava, cuja concentrada amargura a amargava, revelou-se no último exame como a mulher mais terna que jamais existiu, e compreendeu com lastimosa clarividência que as injustas torturas a que havia submetido Pietro Crespi não tinham sido ditadas por uma vontade de vingança, como todo mundo achava, nem o lento martírio com que frustrou a vida do coronel Gerineldo Márquez havia sido determinado pelo fel ruim de sua amargura, como todo mundo achava, mas que as duas ações haviam sido uma luta de morte entre um amor sem medidas e uma covardia invencível, e que finalmente tinha triunfado o medo irracional que Amaranta sempre teve do seu próprio e atormentado coração. (pg.286)
Recordando essas coisas enquanto preparavam o baú de José Arcádio, Úrsula se perguntava se não era preferível deitar de uma vez na sepultura e que jogassem terra em cima, e perguntava a Deus, sem medo, se de verdade achava que as pessoas eram feitas de ferro para suportar tantos padecimentos e mortificações; e perguntando e perguntando ia atiçando sua própria confusão, e sentia uns desejos irreprimíveis de desandar e dizer palavrões e xingamentos como se fosse um daqueles forasteiros e de se permitir enfim um instante de rebeldia, o instante tantas vezes ansiado e tantas vezes adiado de mandar a resignação à merda, e cagar de uma vez para tudo, e arrancar do coração os infinitos montões de palavrões que tinha precisado engolir num século inteiro de conformismo. (pg.288)
Era tão urgente a paixão restaurada que em mais de uma ocasião se olharam nos olhos quando se preparavam para comer, e sem se dizer nada tamparam os pratos e foram morrer de fome e de amor no quarto. (pg.291)
Andava sem rumo, sem afetos, sem ambições, como uma estrela errante no sistema planetário de Úrsula. (pg.298)
Só que no instante final Amaranta não se sentiu frustrada, pelo contrário, sentiu-se liberada de qualquer amargura, porque a morte deparou-lhe o privilégio de se anunciar com vários anos de antecipação. Viu-a num meio-dia ardente, costurando com ela na varanda das begônias, pouco depois que Meme foi para o colégio. Reconheceu-a no ato e não havia nada de pavoroso na morte, porque era uma mulher vestida de azul e com os cabelos longos, de aspecto um pouco antiquado, e um tanto parecida com a Pilar Ternera da época em que a ajudava nos ofícios da cozinha. (pg.314)
Durante o dia os militares andavam pela correnteza das ruas, com as calças enroladas até a metade das pernas, brincando de naufrágio com as crianças. De noite, após o toque de recolher, derrubavam as portas a coronhadas de fuzil, arrancavam os suspeitos de suas camas e os levavam numa viagem sem volta. Era ainda a busca e o extermínio dos malfeitores, assassinos, incendiários e revoltosos do Decreto Número Quatro, mas os militares negavam tudo aos próprios parentes de suas vítimas que lotavam o escritório dos comandantes à procura de notícias. "Com certeza foi um sonho", insistiam os oficiais. "Em Macondo não aconteceu nada, nem está acontecendo, nem acontecerá nunca. Este é um povo feliz." Assim consumaram o extermínio dos chefes sindicais." (pg.345)
E quanto menos compreendia, maior era o prazer. (pg.348)
Choveu durante quatro anos, onze meses e dois dias. (pg.349)
- Adeus, Gerineldo, filho meu - gritou. - Mande lembranças para a minha gente, e diga lá que nos veremos quando parar de chover.
Aureliano Segundo ajudou-a a voltar para a cama, e com a mesma informalidade com que sempre a tratava perguntou o que queria dizer com aquela despedida.
- É verdade - disse ela. - Só estou esperando a chuva passar para morrer. (pg.354)
Aureliano segundo perguntou a eles com sua informalidade habitual de que recursos misteriosos tinham se valido para não naufragar na tormenta, como diabos tinham feito para não se afogar, e um atrás do outro, de porta em porta, devolveram a ele um sorriso ladino e um olhar sonhador, e todos deram, sem ter combinado, a mesma resposta:
- Nadando. (pg.366)
Foi uma ação tão rápida, metódica e brutal, que pareceu um assalto de militares. Aureliano, trancado no seu quarto, não percebeu nada. Naquela tarde, tendo sentido sua falta na cozinha, procurou José Arcádio pela casa inteira, e encontrou-o flutuando nos reflexos perfumados da tina, enorme e tumefacto, e ainda pensando em Amaranta. Só então compreendeu o quanto havia começado a gostar dele. (pg.408)
Ele não tinha pensado até aquele momento que a literatura fosse o melhor brinquedo que haviam inventado para zombar das pessoas. (pg.420)
E sem que ele tivesse revelado que estava chorando de amor ela reconheceu de imediato o pranto mais antigo da história do homem. (pg.428)
Álvaro foi o primeiro que seguiu o conselho de abandonar Macondo. Vendeu tudo, até a onça cativa que zombava dos transeuntes no quintal de sua casa, e comprou uma passagem eterna em um trem que nunca acabava de viajar. (pg.433)
A moça de suéter vermelho que pintava aquarelas no lago de Michigan e que fez para ele, com os pincéis, um adeus que não era de despedida mas de esperança, porque não sabia estava vendo passar um trem sem volta. (pg.434)
Reclusos pela solidão e pelo amor e pela solidão do amor. (pg.435)
Muitas vezes foram despertados pelo flanar dos mortos. Ouviram Úrsula lutando com as leis da criação para preservar a estirpe, e José Arcádio Buendía buscando a verdade quimérica dos grandes inventos, e Fernanda rezando, e o coronel Aureliano Buendía embrutecendo-se com enganos de guerras e peixinhos de ouro, e Aureliano Segundo agonizando de solidão no aturdimento das farras, e então aprenderam que as obsessões dominantes prevalecem contra a morte, e tornaram a ser felizes com a certeza de que eles continuariam se amando com suas naturezas de assombrações muito depois que outras espécies de animais futuros arrebatassem dos insetos o paraíso de miséria que os insetos estavam acabando de arrebatar dos homens. (pg.442)
E naquele relampejar de lucidez teve consciência de que era incapaz de aguentar em cima da alma o tremendo peso de tanto passado. (pg.445)
Macondo já era um pavoroso redemoinho de poeira e escombros centrifugados pela cólera do furacão bíblico quando Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo em fatos demasiado conhecidos e começou a decifrar o instante que estava vivendo, decifrando conforme vivia esse instante, profetizando a si mesmo no ato de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse se vendo num espelho falado. (pg.447)
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