sábado, 27 de junho de 2015

O Curto Verão da Anarquia (Hans Magnus Enzensberger - 1972) #trechos

"Foi assim que, desde os tempos mais antigos, transmitiu-se a História: como saga, como epopeia, como romance coletivo." (pg.15)

"Eppur si muove!" (E, no entanto, move-se.) - Galileu
"Ich kann nicht anders." (Aqui estou, não posso agir de outro jeito.) - Lutero
"Nenhuma investigação científica poderia apagar estas palavras. A prova de que nunca foram ditas não diz nada contra a superioridade delas." (pg.15)

"A História é uma invenção para a qual a realidade fornece os elementos. Não é, porém, uma invenção arbitrária. A curiosidade que desperta se baseia no interesse dos que a narram; permite àqueles que a escutam reconhecer e determinar melhor seus próprios referenciais como também os de seus inimigos. Sem dúvida, devemos muito à investigação científica desinteressada; no entanto ela é como um pobre diabo, uma figura artificial. Só o verdadeiro sujeito da História deixa sua sombra. E esta sombra é projetada como ficção coletiva." (pg.16)

"Na Espanha a palavra liberalismo não significou outra coisa senão o aniquilamento da antiga propriedade comunal, sua "livre" venda, o confisco de bens dos camponeses e a constituição de uma economia de latifúndios. A introdução do regime parlamentarista, em 1843, confirmou a dominação política dos novos latifundiários, que, naturalmente, moravam nas cidades e consideravam suas terras como colônias distantes, deixando-as, por isso, nas mãos de capatazes ou arrendatários.
Dessa forma surgiu um enorme proletariado no campo. Até a eclosão da Guerra Civil, três quartos dos habitantes de Andaluzia continuavam sendo braceros, diaristas que vendiam sua força de trabalho por um salário de fome. Nas épocas de colheita imperava a jornada de doze horas; na outra metade do ano o desemprego era quase total. Os resultados não poderiam ser outros: pobreza endêmica, subnutrição e exôdo rural." (pg.33)

Guardia Civil:
- cuidadosamente escolhidos
- serviam longe de suas cidades
- proibidos de casar
- proibidos de ter amizade com moças da região
- sempre armados e em dupla (la pareja)

"Por tudo isso, nas aldeias andaluzas o ódio contra a classe social adversária manifestou-se, até os anos 1930, como uma permanente guerra de guerrilhas primitiva que aumentava pouco a pouco até chegar a revoltas súbitas e espontâneas por parte dos camponeses. Estes levantes liberavam uma violência instintiva das massas e eram combatidos com um desprezo pela morte nunca visto. Eles transcorriam sempre segundo o mesmo estereótipo: primeiro, os camponeses matavam membros da Guardia Civil, prendiam padres e burocratas, incendiavam igrejas, queimavam cadastros de imóveis e contratos de arrendamento, aboliam o dinheiro, diziam-se livres do Estado e declaravam, por fim, independentes as comunas, decidindo explorar a terra em conjunto. É espantoso comprovar como estes camponeses, em sua maioria analfabetos, seguiam à risca, sem sabê-lo, os ensinamentos de Bakunin. Mas, como as revoltas fossem estritamente locais e conduzidas sem nenhuma organização, em poucos dias viam-se derrotadas, não sem derramamento de sangue, pelas tropas do governo." (pg.34)

Ilustrado/Trabalhador Consciente:
- não jogava e não bebia
- não se casava com a mulher a quem era fiel
- não permitia o batismo dos próprios filhos
- declarava-se ateu
- lia muito e procurava transmitir tudo o que sabia

"Os anarquistas nunca se consideravam um partido político: entre seus princípios inclui-se não participar de eleições parlamentares e não aceitar cargos administrativos. Eles não querem apoderar-se do Estado, e sim aboli-lo. Mesmo em suas próprias ligas os anarquistas combatem a concentração de poder no cume da organização, ou seja, na central sindical. Suas federações são orientadas pelas bases: cada grupo local goza de uma ampla autonomia, e, pelo menos na teoria, a base não é obrigada a curvar-se às decisões do comando. Isso depende, naturalmente, das condições concretas de como esses princípios são efetivos na prática." (pg.36)

"O golpe que deveria por abaixo a velha sociedade veio da direita. A direita estava decidida, desde a fundação da Frente Popular, a derrubar à força o governo eleito. Para isso eram necessários preparativos de ordem ideológica e na forma de organização. Os modelos de como a reação poderia abandonar seus sonhos de restauração e passar à ofensiva foram tirados da Alemanha de Hitler e da Itália de Mussolini. Além disso, as potências do Eixo prometiam auxílio material e de propaganda. A Falange espanhola começava a crescer. O Exército preparava o golpe de Estado. O confronto era mais do que previsível. O governo hesitava. Os generais atacaram: em 17 de julho, Franco pôs-se à frente de uma revolta militar no Marrocos espanhol. Em 18 de julho, o putsch se alastrou pelo continente. Três dias depois, um terço do país estava nas mãos dos generais: a ultra-católica Navarra, uma parte de Aragón, Galiza, León, Castella Velha, Sevilha, Cádiz e Córdoba. Os golpistas não contavam com nenhuma resistência mais séria. Mas fizeram seus cálculos sem contar com o povo espanhol." (pg.88)

"Onde está o inimigo? Nesta história ele sempre emerge à margem do campo visual: uma mancha na janela, atrás de uma metralhadora; uma sombra além das barricadas, um velho num escritório, uma silhueta numa trincheira. Ele permanece quase sempre anônimo, mas ao mesmo tempo é onipresente. Não se trata de uma suposição ilusória. Revolução e guerra são duas coisas diferentes. Para quem deseja não apenas vencer um inimigo militar, mas também transformar a sociedade em que vive, não há uma linha demarcatória nítida que o faça distinguir o amigo do inimigo." (pg.225)

"Quanto mais transcendentes os valores pregados por uma ideologia, tanto maior é, em geral, a falta de escrúpulos de seus defensores." (pg.228)

"A total irracionalidade das palavras de ordem foi benéfica para o fascínio ideológico do fascismo. Na Espanha, como antes na Itália e na Alemanha, ele mobilizava forças inconscientes de cuja existência a esquerda não tinha nenhuma ideia: medos e ressentimentos, vivos também na classe trabalhadora. Os anarquistas prometiam (mas não podiam realizar) um mundo inteiramente laico, mundo futuro onde Estado e Igreja, família e propriedade cessariam de existir. Ora, estas instituições não eram apenas objeto de ódio, mas também se confiava nelas, e o futuro da anarquia despertava não só nostalgia como também medos obscuros de pulsões elementares. O fascismo, ao contrário, oferecia o passado como o burgo de refúgio - um passado que naturalmente nunca existiu. O ódio ao mundo moderno (mundo esse tão mal-recebido na Espanha desde o Iluminismo) podia entrincheirar-se numa Idade Média fictícia, e a identidade ameaçada podia aferrar-se às grades institucionais do Estado autoritário." (pg.229)

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