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Jack London |
"Achei aquela raiva injustificada um tanto divertida, e enquanto ele mancava de um lado a outro me deixei envolver pelo romantismo do nevoeiro. E era mesmo romântico: o nevoeiro como a sombra cinzenta do mistério infinito, a cobrir os rodopios da Terra, e os homens como meras partículas de luz e faísca, amaldiçoados por um gosto insano pelo trabalho, invadindo o coração do mistério montados em corcéis de madeira e aço, abrindo caminho às cegas pelo Invisível com o brado e o clangor de seus discursos confiantes, enquanto em seus corações pesam a incerteza e o medo." (Capítulo 1)
"Os olhos, que eu estava destinado a conhecer muito bem, eram grandes e belos, distanciados como os de todo artista." (Capítulo 3)
"-Não se deixe pertubar por coisas à-toa. Vai se acostumar a tudo isso com o tempo. Você vai mancar um pouco, mas ao mesmo tempo vai aprender a andar. - E depois acrescentou: - É o que se pode chamar de um paradoxo, não é?" (Capítulo 4)
"-Eles se movem, como se move a água-viva. Eles se movem para conseguir comer e continuar se movendo. Aí está. Existem em função da barria, e a barriga existe em função deles. É um círculo. Você não chega a lugar algum. Nem você nem eles. No fim eles simplesmente param. Já não se movem. Estão mortos.
- Eles sonham - interrompi. - Sonhos vívidos e radiantes sobre...
- Comida. - ele concluiu sentenciosamente.
- E também sobre...
- Comida. Sonham com um apetite maior e mais sorte para saciá-lo.
(...)
- Pois perceba, eles sonham com viagens bem-aventuradas que lhes trarão mais dinheiro, em alcançar o posto de imediato do navio, encontrar fortunas. Em suma, sonam estar na melhor posição para rapinar seus semelhantes, dormir a noite toda, ter boa comida e mandar alguma outra pessoa fazer o trabalho sujo. Você e eu somos iguais a eles. Não há diferença, fora o fato de termos comido mais e melhor." (Capítulo 5)
"- Mas isso é desolador - protestei.
- Estou de acordo - ele respondeu. - Então por que nos movemos, já que a vida é movimento? Se não nos movêssemos e não fizéssemos parte do fermento, não haveria desolação. Mas, e aí está a questão, queremos viver e nos mover, embora não tenhamos razão nenhuma para isso, pois ocorre que é da natureza da vida viver e se mover, querer viver e se mover. Não fosse por isso, a vida estaria morta. Você sonha com a imortalidade por causa dessa vida que está dentro de você. A vida que está dentro de você está viva e quer seguir vivendo para sempre. Bah! Uma eternidade de mesquinharias!" (Capítulo 5)
"Vida? Bah! Ela não tem nenhum valor. É a coisa mais barata que existe. Está mendigando por toda parte. A natureza a desperdiça com mão generosa. Onde há espaço para uma vida, ela enfia uma centena, e estas vidas se devoram até que prevaleça a vida mais forte e mais mesquinha." (Capítulo 6)
"Um homem não pode injustiçar outro homem. Pode apenas injustiçar a si mesmo. Da forma como vejo, sempre cometo uma injustiça ao levar em conta os interesses dos outros." (Capítulo 8)
"Cortei fora a raça e a prole. Não sacrificaria coisa alguma por elas. É apenas afetação e sentimentalismo, e você mesmo deve pensar assim, se for um homem que não crê na vida eterna. Se a imortalidade estivesse à minha espera, o altruísmo seria um investimento rentável. Eu poderia elevar minha alma a atitudes de toda espécie. Mas com nada de eterno à minha espera, a não ser a morte, e tendo recebido apenas um período muito breve para rastejar e me debater nesse fermento a que chamamos vida, seria imoral de minha parte realizar qualquer ato que implique sacrifício. Qualquer sacrifício que me impeça de rastejar e me debater é uma tolice e, mais que isso, uma depravação e uma injustiça contra mim mesmo. É preciso rastejar e se debater sempre que possível para extrair o máximo do fermento. E a imobilidade eterna que me aguarda também não será facilitada ou dificultada pelos sacrifícios e atos desinteressados de meus tempos de fermento fervilhante." (Capítulo 8)
"- Mas a história fala de escravos que fundaram impérios - contestei.
- E a história fala das oportunidades que surgiram para os escravos que fundaram impérios - ele respondeu com amargura. - O homem não faz a oportunidade. Tudo que os grandes homens fizeram foi reconhecer a oportunidade quando ela apareceu diante deles." (Capítulo 10)
"- Sim, obrigado pelo termo. Tem toda a minha brutalidade, mas mal sabe ler e escrever.
- E ele nunca filosofou sobre a vida - acrescentei.
- Não - respondeu Wolf Larsen, com indescritível ar de tristeza. - E ele é mais feliz assim, deixando a vida em paz. Está ocupado demais vivendo para pensar nela. O meu erro foi ter um dia aberto o livro." (Capítulo 10)
"A vida, quando entende que precisará deixar de viver, sempre se rebela." (Capítulo 11)
"Em sua atitude, encontrei a refutação mais completa do materialismo de Wolf Larsen. O marinheiro Johson era animado por ideias, princípios, verdade e sinceridade. Ele estava certo, sabia que estava certo, e não tinha medo. Morreria pelo que era certo se fosse necessário, seria fiel a si mesmo, sincero diante da própria alma. Nisso se afigurava a vitória do espírito sobre a carne, a indomabilidade e o esplendor moral da alma que não conhece restrições e eleva-se acima do tempo, do espaço e da matéria com uma certeza invencível que só pode nascer da eternidade e da imortalidade." (Capítulo 12)
"- A vida de um homem fica mais emocionante - ele me explicou - quando está nas mãos de um outro. O homem é um apostador nato e a vida é a maior coisa que pode apostar. Quanto maior aquilo que está em jogo, maior a emoção." ( Capítulo 16)
"- As portas do inferno vão se abrir - ele me preveniu -, mas não dê bola. Concentre-se no seu trabalho." (Capítulo 17)
"Nesses momentos eu me sentia estranhamente a sós com Deus, sozinho a seu lado, admirando o caos de sua fúria. (...) Ah, que espanto, que espanto ver homens tão pequenos vivendo, respirando e trabalhando, conduzindo aquela estrutura de madeira e pano tão frágil em meio à fúria prodigiosa da natureza!" (Capítulo 17)
"É verdade que Wolf Larsen era dotado de um intelecto incomum, mas que o direcionava somente para o exercício de seus instintos selvagens, e com isso se tornava um selvagem ainda mais formidável." (Capítulo 23)
"Ele tinha chegado, finalmente, o amor tinha chegado, justamente quando eu menos esperava e nas circunstâncias mais hostis. É claro que minha filosofia sempre tinha reconhecido a inevitabilidade de que o amor chamasse cedo ou tarde, mas anos seguidos de recolhimento em meio aos livros tinham me deixado desatento e despreparado." (Capítulo 23)
"Não que eu temesse o amor ou relutasse em assumi-lo. Pelo contrário, como idealista profundo que eu era, minha filosofia tinha desde sempre reconhecido e valorizado o amor como a maior coisa do mundo, o objetivo e o ápice da existência, o mais refinado pináculo de júbilo e felicidade que se podia alcançar na vida, a coisa mais elevada que se podia saudar, receber a acolher no coração. Mas, agora que ele estava aqui, eu não conseguia acreditar. Não era possível que eu tivesse tanta sorte." (Capítulo 23)
"- Sabe, às vezes fico pensando que eu também gostaria de ser cego para os fatos da vida e conhecer somente suas fantasias e ilusões. Estão erradas, completamente erradas, é claro, e são contraditórias à razão. Mas diante delas a minha razão me diz, de maneira completamente equivocada, que sonhar e viver com ilusões é mais prazeroso. E, afinal de contas, o prazer é o salário que recebemos por viver. Sem o prazer, a vida é um ato imprestável. Trabalhar pela vida e não ser pago é pior do que estar morto. Quanto mais prazer sentimos, mais estamos vivendo, e os seus sonhos e irrealidades são menos perturbadores e mais gratificantes para vocês do que os meus fatos para mim. (...) Questiono com frequência, com frequência, se a razão realmente vale a pena. Os sonhos devem ser mais plenos e satisfatórios. O prazer emocional é mais substanciosos e duradouro que o prazer intelectual, e, além disso, você paga pelos momentos de prazer intelectual com a tristeza. O prazer emocional é sucedido apenas por uma fadiga dos sentidos, que se recuperam logo. Eu os invejo, eu os invejo. (...) Eu os invejo com o cérebro, percebam, e não com o coração. A minha razão me obriga. A inveja é um produto intelectual. Sou como o homem sóbrio contemplando os bêbados e desejando, com imenso pesar, estar bêbados como eles." (Capítulo 24)
"Ele parou de falar e seu olhar ausente passou por ela e se perdeu no mar plácido. A velha melancolia primitiva tinha se abatido sobre ele com força. Ele tremia sob seu efeito. Tinha seguido a trilha de seu raciocínio até uma crise de tristeza e era de se esperar que dali a poucas horas seus demônios interiores estivessem despertos e agitados. Lembrei de Charley Furuseth e entendi que a tristeza desse homem era o castigo que todo materialista deve pagar por seu materialismo." (Capítulo 24)
"A descoberta do amor fazia de mim um gigante. Eu não temia nada. Imporia minha vontade contra tudo." (Capítulo 26)
"Quando foi atirado no inferno, não se deu por vencido. Tinha levado com ele um terço dos anjos de Deus, e sem demora incitou os homens a se rebelarem contra Deus, conquistando para si e para o inferno a maior parte das gerações de homens. Por que ele foi expulso do paraíso? Porque era menos corajoso que Deus? Menos orgulhoso? Menos ambicioso? Não! Mil vezes não! Deus era mais poderoso, como ele disse, aquele cujo trovão era mais forte. Mas Lúcifer era um espírito livre. A servidão, para ele, era sufocante. Preferia sofrer em liberdade a ter toda a felicidade de uma servidão confortável. Não tinha vontade nenhuma de servir a Deus. Não tinha vontade de servir a nada. Não foi apenas um fantoche. Ficou em pé com as próprias pernas. Era um indivíduo.
(...)
Here at least
We shall be free; the Almighty hath not built
Here for his envy, will not drive us hence;
Here we may reign secure; and in my choice
To reign is worth ambition, though in hell:
Better to reign in hell than serve in heaven.
[Trecho em ítalico: versos do Paraíso Perdido de Milton, Livro I, 257-63.]" (Capítulo 26)
"Não demorou para que as canções e berros ficassem distantes, meus olhos fechassem e minha consciência afundasse na morte parcial do descanso profundo." (Capítulo 26)
"O homem que ele era estava intacto, era o velho e indomável Wolf Larsen, preso em algum lugar daquela carne que já fora tão invencível e imponente. Agora ela o agrilhoava em correntes inanimadas, emparedando sua alma na escuridão e no silêncio, barrando-o desse mundo que, para ele, havia sido um turbilhão de pura ação." (Capítulo 37)
"Era como uma mensagem vinda da escuridão do túmulo, pois o corpo daquele homem tinha se tornado o seu mausoléu. Naquela sepultura tão estranha, seu espírito se agitava e vivia. Ele se agitaria e viveria até o rompimento da última linha de comunicação. E quem poderia dizer por quanto tempo mais depois disso?" (Capítulo 37)
"A última linha de comunicação caiu. Em algum lugar daquele túmulo de carne jazia a alma de um homem. Emparedada em argila viva, aquela inteligência aguçada que havíamos conhecido ainda queimava, mas queimava no silêncio e na escuridão. E estava desligada da carne. Aquela inteligência não podia ter nenhum conhecimento objetivo de um corpo. Não tinha acesso a corpo algum. O mundo em si deixara de existir. Ela tinha acesso somente a si mesma e à vastidão e à profundidade do silêncio e da escuridão." (Capítulo 38)
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